Uma História da (des)igualdade – Factos, Números e Magos

Essencial para a diversidade e dos mais controversos ideais sociais, a igualdade é fator incondicional das (boas) práticas de governance.

A igualdade, porventura um dos mais controversos ideais sociais, é alvo de debate, conflito e discórdia desde a Grécia Antiga, razão de avanços e recuos, posições interessadas e interesseiras, conveniências e, até, ignorância atroz. Também o seu antónimo, a desigualdade, tem vindo ao longo dos séculos a suscitar uma mesma dose de polémicas. Eventualmente, pelas mesmas motivações. Quer a igualdade, quer a desigualdade, partem do pressuposto de que há, entre os Homens, diferenças. E as mesmas diferenças podem servir, afinal, argumentos para a igualdade e para a desigualdade. Por um lado, a diferença é a materialização da diversidade e a evidência de que o ser humano não é laboratorial, antes único e inigualável, mas, ao mesmo tempo, igual em direitos face ao seu par. Por outro lado, é pela constatação da diferença e o pressuposto da diversidade, ancorados na perceção egoística de que a “minha” diferença é mais legítima do que a do outro, que surge uma cegueira vigorosa face à legitimidade e à própria legalidade da igualdade. Olhemos para as organizações. E para o género como uma das componentes vitais da diversidade.

Ser igual, com todas as diferenças

De acordo com o Relatório Women Matter Portugal 2023, Women are still far from top corporate leadership positions (março de 2023), da McKinsey Madrid, existe ainda uma enorme escassez de mulheres no mundo corporativo, à medida que se sobe na hierarquia; as mulheres representam metade da força de trabalho em Portugal, mas ficam aquém da média europeia relativamente à presença em lugares de decisão; não houve crescimento significativo na representação de mulheres em cargos de chefia nos últimos dois anos. E os motivos para esta discrepância podem ser vários, desde serem as mulheres em maior percentagem as únicas “supervisoras” em casa; serem menos as mulheres a aproveitarem oportunidades internacionais ou a aceitarem cargos de maior responsabilidade por motivos culturais. O tema é, de resto, eminentemente cultural. Ou não continuaríamos hoje, aqui, estoicamente a falar sobre isto. 

Uma questão de governance

Lembrar, antes de avançarmos, e voltando ao início, que a diversidade, a equidade e a inclusão constituem requisitos fundamentais da própria democracia e contributos nevrálgicos para a sustentabilidade do desenvolvimento dos países, das sociedades, das organizações, dos profissionais, das famílias, das pessoas nas suas diferentes dimensões de vida. E falar de diversidade organizacional – que pressupõe que estejamos a falar de governance – implica, infelizmente, ainda neste junho de 2023, falar das mulheres enquanto género sub-representado nos lugares de decisão.

Atentemos ao facto, porém, de que a diversidade, concretamente de género, e a igualdade de oportunidades, têm impactos reais nas empresas ao nível do desempenho económico e da competitividade: uma equipa executiva com diversidade de género aumenta a probabilidade de melhores resultados financeiros em 25%; assim como ambientes de trabalho não inclusivos podem limitar a atração de talentos até 39%. As empresas portuguesas com uma equipa de gestão composta por, pelo menos, 30% de mulheres obtêm melhores resultados financeiros do que aquelas com menos de 10% de representação feminina. É o que nos diz o mesmo Relatório Women Matter Portugal 2023, aqui já referido.  

E é verdade que, de acordo com o Pew Research Center, as mulheres destacam-se em vários fatores decisivos da liderança corporativa, como a criação de espaços de trabalho seguros, a valorização e integração de pessoas oriundas de diferentes backgrounds, a consideração do impacto social das decisões de negócio, a mentoria e o cuidado com colaboradores mais jovens ou o sentido de justiça face às condições e ao estatuto remuneratório. Está, como vimos, provado que organizações com lideranças mais diversas alcançam resultados e situações financeiras mais robustas e sustentáveis. Não é só do ambiente social que falamos. Também é de contas.    

O que conquistámos

Há, como sabemos, diferentes marcos, desde logo liderados pelas Nações Unidas, que contribuíram intencionalmente para eliminar e prevenir barreiras à afirmação das mulheres, evitar a sua discriminação ou identificar critérios transparentes para o acesso a lugares de decisão, como A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979); ou a Plataforma de Ação adotada na 4.ª Conferência Mundial sobre as Mulheres realizada em Pequim (1995). Também de notar o Tratado de Lisboa (em vigor desde 2009), por ter reafirmado o princípio da igualdade entre homens e mulheres como valor fundamental na União Europeia.

Houve, numa perspetiva normativa, um primeiro apelo às empresas europeias lançado em 2011 por Viviane Reding, anterior Vice-Presidente da Comissão Europeia, no sentido de serem adotadas medidas de autorregulação, promotoras de um maior equilíbrio entre mulheres e homens. Ora, este apelo teve ecos em Portugal e, de lá para cá, foram sendo dados pequenos passos, mas reais, em nome da diversidade.

Olhemos para a radiografia da diversidade organizacional. E aqui há um trabalho de investigação incontornável, o Livro Branco (novembro de 2021), coordenado pela cientista Sara Falcão Casaca, que nos remete para uma agregação de contributos teóricos e metodológicos da Sociologia, dos Estudos de Género e da Gestão e que tem implícita a dinamização de uma comunidade de debate, dado que há vários aspetos conquistados, mas também ainda muito trabalho por fazer.

No contexto da União Europeia (UE), destacam-se duas abordagens: voluntarista ou não vinculativa e regulatória ou vinculativa com um quadro sancionatório em caso de incumprimento. Há entre a UE três diferentes posicionamentos ou velocidades: países que não têm qualquer medida em vigor (como Estónia, Letónia, Roménia); outros com medidas de autorregulação das empresas (como Espanha, Dinamarca, Finlândia); e outros, ainda, com medidas regulatórias (como Portugal, Alemanha, França). 

Em Portugal, e dado o percurso normativo nacional mais recente, destaca-se a Lei n.º 62/2017, de 1 de agosto (em vigor desde 1 de janeiro de 2018), que estabeleceu o regime da representação equilibrada entre mulheres e homens (33,3%) nos órgãos de administração e fiscalização das entidades do setor público empresarial e das empresas cotadas em bolsa (Euronext Lisbon). A juntar ao cumprimento dos limiares mínimos de representação equilibrada, esta lei veio também determinar a obrigatoriedade de as empresas elaborarem anualmente um Plano para a Igualdade (PI) e de o divulgarem na Internet (e, ainda, de o partilharem com a CIG e a CITE, podendo estas emitir recomendações). Ora, esta obrigatoriedade criou evidência sobre a relevância dos PI como instrumentos estratégicos de operacionalização de uma abordagem integrada e transversal de promoção da Igualdade entre mulheres e homens nas empresas, acomodando uma tomada de consciência sobre aspetos tão diversos, como a igualdade no acesso aos diferentes lugares; a igualdade nas condições de trabalho; a igualdade remuneratória; a proteção da parentalidade; a conciliação da vida profissional com a vida familiar e pessoal; a formação contínua integrada num plano estratégico de desenvolvimento; a promoção e progressão de carreira; ou avaliação de desempenho.

Portugal tem feito, em bom rigor, um progresso notável neste campo e mostro-me convicta de que a PWN Lisbon – organização global vocacionada para o desenvolvimento da carreira que tenho o privilégio de liderar, já com 12 anos de atividade em Lisboa – tem vindo a contribuir ativamente para o efeito. Mas não é, claro, a única força a mover-se nesta frente. Devemos, pois, focar-nos naquilo que podemos melhorar. Porque é tempo de ganharmos uma maior ambição quanto à definição e implementação de práticas inequivocamente promotoras da diversidade e, logo, de governança, que em grande parte dependem dos próprios perfis de liderança. Desde o início.

Um olhar sobre a história

Ao analisarem sociedades caçadoras-recoletoras da atualidade, muitos antropólogos identificam nelas indícios de desigualdade e, até, estruturas bastante hierárquicas típicas das comunidades humanas dos primórdios. Na Antiguidade Clássica, porém, um novo formato de governo, assente em eleições e na partilha de poder dava à Grécia do século VI a.C. o epíteto de berço da democracia. Aí nascia, porventura, uma aproximação da concretização efetiva da igualdade, não fosse o ideal encontrar-se desprovido de uma total coerência ao excluir mulheres, estrangeiros e escravos. A igualdade ateniense, que viria a dominar o pensamento político da Antiguidade, estava limitada a uma minoria. Os dois maiores pensadores gregos, Platão e Aristóteles, olhavam para a desigualdade e a hierarquia como perfeitamente normais. Mais do que isso, desejáveis. A classificação aristotélica, porém, conheceu contraditório firme no estoicismo, que apontou pela primeira vez na tradição filosófica a igualdade como um valor universal e desejável, visão absorvida nos escritos de São Paulo, numa clara afinidade com o pensamento estoico. Também do lado romano, o estoicismo ganhou adeptos, tendo Cícero e Séneca sido os seus mais entusiastas seguidores. Séneca, contudo, rapidamente deu a entender que para si a igualdade, afinal, seria apenas teórica, abrindo a brecha desde logo no campo do género ao considerar as mulheres imprudentes e coléricas, apenas preparadas para obedecer a quem tinha manifestamente poder: os Homens.

Se nos centrarmos no Iluminismo do século XVIII, por exemplo, percebemos como a igualdade não era ideal fundacional nenhum, posicionando-se a desigualdade humana como corolário universal. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi, pois, apologista de que a questão fundamental não seria a igualdade, mas o seu contrário, a desigualdade, na medida em que nascendo os seres humanos exatamente iguais, teriam de ser explicadas as razões pelas quais se impunha, afinal, a desigualdade.

Ainda antes das revoluções liberais americana e francesa, surgia pela mão de Mary Wollstonecraft, em 1772, um dos textos fundadores do feminismo: Uma Defesa dos Direitos da Mulher. Ao abrir a Declaração da Independência dos Estados Unidos (4 de julho de 1776) com a bandeira bombástica de que os Homens nascem todos iguais, Thomas Jefferson desencadeou a pólvora ao dar como certa uma ideia que não estava, então, ainda, dada a concordâncias. A própria Revolução Francesa (1789), assente no ideário trinitário Liberdade, Igualdade e Fraternidade, não garantiu na implementação dos seus ideais a igualdade para todos, talvez porque nem sequer chegou a conseguir definir as suas reais fronteiras.

Apesar de vários e significativos avanços, sabemos que os últimos 500 anos não foram pródigos em igualdade. No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 pelas Nações Unidas, veio dar novo ímpeto à igualdade, que tendeu a enraizar-se perante a lei. Na prática, contudo, conhecemos exemplos recorrentes de desigualdades económicas e sociais que a lei não impede e a sociedade não escrutina. Mas podemos ir de novo atrás e, na nossa própria génese cultural, encontrar uma das lições fortes, senão a mais paradigmática, de diversidade.

Como os Magos

Voltei por estes dias às palavras sábias de Vítor Feytor Pinto, nas suas 100 Entradas para Um Mundo Melhor, uma publicação com a coordenação de Maria João Avillez. Aí encontrei uma passagem com a narrativa dos Reis Magos, que tudo tem a ver connosco e a diversidade, imaginem. Na apologia de Feytor Pinto, a narrativa dos Reis Magos é muito mais do que um “passeio”. No caminho dos Magos, está a vida como ela é. Com normalidade, com adversidades, proximidade e distâncias, pontes, estradas, ruelas, atalhos, caminhos perdidos, destinos descobertos, curvas, desterros, tropeções, correntezas, velocidade, serenidade, luz. É a nossa vida:

  • com distância – no longo caminho percorrido, de dois anos, os Magos enfrentaram a dureza da viagem; qualquer que seja a cultura do Homem contemporâneo, nunca lhe é fácil o encontro responsável com o outro.
  • com adversários – estar com Herodes implicou uma extraordinária prudência e os magos não se aperceberam de que estavam perante um adversário; hoje, todos os Homens enfrentam situações deste género.
  • com discernimento – aconselhados, os Magos regressaram às suas terras por outros caminhos; nesta aparente nota de redação está contido um dos elementos mais nobres da vida humana: a capacidade de mudança, a abertura da vida à conversão.
  • com diversidade – os três magos tinham diferentes origens; uma vez postos no mesmo caminho, cada um precisou de uma grande humildade para aceitar os outros na sua identidade própria. Entre nós, seres humanos, a dificuldade maior está na tolerância, no aprender a dialogar, fazer pontes (sobretudo se o interlocutor for diferente). 

Procuremos esse outro caminho, sem condescendências. É mudar para crer. E não dei, não pensem, esta volta à toa. Foi para, no tom do storytelling, chegar ao ambiente organizacional, onde a distância, os adversários, o discernimento e a diversidade são argumentos de uma história sem os quais a História não se faz bem. Ainda que possa acontecer.   

Presidente da PWN Lisbon, organização internacional focada no desenvolvimento da liderança. Há 18 anos no setor das comunicações, é profissional de comunicação e marketing, com o mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade Católica Portuguesa. Fundou o Entre | Vistas, plataforma digital de comunicação cultural que originou o livro da sua autoria As Perguntas que Somos.

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