Especial habitação: A oferta

A oferta (ou a falta dela) é um dos temas mais debatidos quando discutimos o acesso à habitação. Não há como a evitar.

Depois de um capítulo dedicado à demografia, e em como esta disciplina impacta o mercado residencial, vou agora falar na oferta, ou se preferir, da falta dela. Esta é provavelmente a dimensão mais mencionada quando se discutem as dificuldades de acesso à habitação em Portugal.

A melhor forma de discutir a oferta de habitação em Portugal pode muito bem começar pela análise da produção de casas. E é precisamente essa informação que o gráfico abaixo apresenta: a evolução do número de fogos concluídos desde o início do século.

É verdade que, a título de exemplo, em 2003 e 2009 se completaram 359,0% e 137,7% mais habitações que em 2022. E que não parece haver muitas dúvidas sobre a construção nova e a reabilitação do edificado devoluto, serem o caminho mais óbvio para suprir a falta de oferta habitacional.

O que parece igualmente importante é tentar entender a razão destas variações tão significativas na capacidade construtiva do país.

Não esquecer o passado

É relevante percebermos que na primeira década deste século se edificaram 5,8 vezes mais fogos que na década seguinte. Essa discrepância é um indicador forte de como se estarão a construir menos casas do que aquelas que deverão ser necessárias.

Mas é igualmente importante lembrar algumas das coisas a que estes números mais abundantes da construção podem estar associados.

Entre 2010 e 2014, encerraram quase 40.000 empresas dos sectores da construção e imobiliário. E, segundo o Relatório de Estabilidade Financeira do Banco de Portugal, em 2016, “estes dois setores concentram cerca de 48% do crédito vencido das sociedades não financeiras” (ligeiramente abaixo dos 50,0% de 2014).

Esta porção de crédito vencido parece ajudar a explicar que:

  1. No início da década passada os bancos tivessem invertido radicalmente a sua estratégia de concessão de crédito, e deixado de financiar a construção;
  2. O total de crédito à habitação concedido de 2011 a 2015 (recordo que a "troika" esteve em Portugal entre 2011 e 2014), tenha sido inferior àquele que foi contratado durante o ano de 2022;
  3. Há precisamente 10 anos, a percentagem de devedores em incumprimento atingiu, respetivamente, 29,6% e 14,4% nas sociedades não financeiras e particulares, conforme pode ser observado no gráfico abaixo, com dados do Banco de Portugal.

A subida do incumprimento bancário e a falência de tantas empresas do sector, parecem demonstrar que o volume de construção do início do século e a concessão de crédito que o alavancava não eram sustentáveis.

Se estas empresas encerraram atividade e os bancos viram aumentar o crédito vencido, isso parece ter acontecido essencialmente (ressalvando que só muito raramente uma ocorrência é justificada apenas por um fator), porque tanto uns quanto outros, sobrestimaram o valor de mercado que estes imóveis viriam a ter, ou a capacidade que alguém teria em os comprar, por altura da sua conclusão.

E que lições podemos tirar?

Nos últimos anos – primeiro durante a pandemia, e mais recentemente, perante a inflação e a subida repentina das taxas de juro – economistas e profissionais do sector afirmavam, e aparentemente com razão, que o risco de voltarmos a viver uma crise como a do subprime era significativamente mais baixo.

Isto porque os bancos apresentavam agora rácios de capitais próprios mais robustos, e exibiam mais critério e prudência na concessão de crédito.

Mas ao reconhecer esta mudança, estes especialistas também se estavam a demarcar daquele passado, alavancado em grande medida pelo financiamento ininterrupto das casas a 100%, desde a sua edificação através do fomento à construção, até serem entregues ao consumidor final, por via do crédito à habitação.

Ou seja, não se deve acenar com a bandeira da estabilidade financeira alegando que já não se repetem erros de antigamente e, ao mesmo tempo, evocar os tempos em que esses mesmos erros foram cometidos, como exemplo a seguir para resolver uma crise de acesso à habitação.

Com isto tento apenas dizer que precisamos de mais construção, não porque a filosofia ou a visão de outros tempos eram mais lúcidas ou esclarecidas do que as de hoje (até porque contribuíram para uma crise financeira), mas porque se deve dar importância às quase 14 mil famílias em lista de espera para rendas acessíveis em 16 dos concelhos mais populosos do país e a muitas das pessoas que vivem em carência habitacional, sobre as quais creio não haver estimativas muito robustas, mas a cuja existência e anseios têm sido dados uma maior visibilidade durante o último ano.

O que não pode deixar de ser lembrado é que o imóvel é um bem de produção lenta. Ou seja, passam-se anos desde que a sua edificação é desejada e planeada, até que o produto esteja acabado.

Este afastamento temporal, desde o momento em que um plano de negócios é elaborado ou aferida uma carência habitacional, até à finalização da operação, apresenta um admirável mundo novo de potenciais surpresas, que podem mudar substancialmente as premissas de um investimento, facilitando ou comprometendo o seu propósito inicial.

E foi precisamente isso que aconteceu durante o subprime: uma sucessão de ocorrências que empresários e bancos não conseguiram antecipar.

Timings, licenciamentos e a atração dos privados

Nos últimos anos tem-se falado mais em processos de pré-fabrico fora do local da obra que, segundo algumas vozes emergentes, poderão influenciar positivamente a qualidade e a rapidez dos trabalhos. Assim como o seu impacto ambiental e a segurança dos operários: em 2021, segundo o Eurostat, a construção foi responsável por 20% dos acidentes de trabalho que originaram mortes.

Mas, enquanto esta possível mudança não ocorre (e é difícil de imaginar que alguma coisa possa acontecer sem incentivos do Estado), falar no tempo de produção de um imóvel é também, invariavelmente, falar nos timings de licenciamento.

É frequente que os empresários ligados à promoção imobiliária se queixem de atrasos injustificados nos processos de licenciamento, com prejuízo para os timings de construção e, necessariamente, para o preço final das casas. Em maio deste ano o Expresso escrevia que, segundo a Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários, os licenciamentos estariam a demorar três anos na Câmara Municipal de Lisboa (contra um intervalo entre seis e 12 meses em municípios do interior).

Talvez fosse interessante que os promotores partilhassem publicamente exemplos de processos de licenciamento para que, quem não está envolvido e familiarizado com os mesmos, pudesse entender o quão injustificados serão estas demoras.

Seria uma maneira de informar a opinião pública. Mas também de exercer, de forma perfeitamente legítima, pressão sobre a ação política.

Os testemunhos sobre infindáveis processos de licenciamentos têm como consequências mais imediatas o encarecimento dos projetos e o aumento do risco de toda a operação.

E estas duas coisas resultam quase sempre numa terceira: um preço mais elevado para o comprador final.

Por outro lado, o Estado não tem conseguido atrair a iniciativa privada. O agora primeiro-ministro demissionário, António Costa, pretendia que fossem edificadas 26.000 casas em literalmente meia dúzia de anos. Este desejo foi expresso em 2018, para ser concretizado até 2024, mas em setembro deste ano, apenas 1.400 habitações haviam sido concluídas. O que só pode ser rotulado como um tremendo fracasso, que até o próprio se viu obrigado a reconhecer.

Ainda agora, a Câmara Municipal de Lisboa prepara-se para relançar, com um formato distinto, dois concursos públicos para a construção de mais de 500 fogos em Benfica e no Parque das Nações, que não haviam conseguido atrair uma única candidatura entre outubro de 2021 e dezembro de 2022.

Parece clara a importância de encontrar propostas de valor com capacidade de captar a atenção da promoção imobiliária.

O impacto que a procura estrangeira (supostamente) não tem

No capítulo anterior, dedicado à Demografia, vimos que, segundo publicação de 25 de outubro do Instituto Nacional de Estatística, “nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa, o preço mediano (€/m2) das transações efetuadas por compradores com domicílio fiscal no estrangeiro superou, respetivamente em +61,3% e +91,6%, o preço das transações por compradores com domicílio fiscal em território nacional".

É previsível que, perante um maior número de estrangeiros a comprar casas a preços mais elevados, os promotores imobiliários se foquem em segmentos de produto prime. Até porque, expectavelmente, este posicionamento deverá assegurar uma maior margem financeira, e uma menor vulnerabilidade perante ciclos económicos desfavoráveis.

Esta lógica é válida para a generalidade dos sectores: o aparecimento de uma nova franja de populacional com maior poder de compra gera novas oportunidades de negócio e, previsivelmente, a chegada de novos produtos e serviços para fazer face às necessidades destes novos habitantes. Estejamos nós a falar de restaurantes e mercearias, ou de escolas internacionais para os filhos daqueles que se instalam num novo país.

Um exemplo simples: posso assegurar-lhe que, até final de 2021, quando a compra de casas na capital era ainda elegível para a obtenção de golden visa, havia uma série de empreendimentos cujo público-alvo era, claramente, potenciais candidatos a este visto. Não se trata da minha apreciação pessoal, mas da própria mensagem que era passada por quem promovia os projetos, e de uma evidência reconhecida transversalmente por todo o sector.

A prova mais palpável de que a procura estrangeira tem um impacto no mercado imobiliário de algumas localizações (e necessariamente, nos preços que ali são praticados), é que a própria oferta de habitação se adequou a essa procura.

Não se trata de diabolizar a procura estrangeira ou esquecer as coisas boas pelas quais ela é responsável. Apenas de não ignorar algumas evidências. Porque, com ou sem golden visa e com ou sem ou residentes não habituais, boa parte dos novos empreendimentos disponíveis em Lisboa e Porto e em alguns dos seus arredores, foram (ou são) desenvolvidos a pensar em clientes com maior capacidade aquisitiva. E quase sempre, uma boa parte destes compradores são estrangeiros.

Mas se a prioridade é aumentar o inventário de fogos acessíveis à classe média, e as atuais condições de mercado são desfavoráveis a esse desígnio, cabe ao Estado conceber soluções e incentivos para que estes projetos sejam atraentes para a iniciativa privada.

Voltaremos a este tema mais à frente, no capítulo dedicado ao papel do Estado. Mas na próxima semana, vou falar da dimensão complementar da oferta: a procura.

Consultor imobiliário na KW e especialista no mercado residencial da Grande Lisboa, é autor do blogue A House in Lisbon e da série Minuto Imobiliário. Nascido em Lisboa e formado em Sociologia, foi gestor no BES, assinou o blogue O Alfaiate Lisboeta, e foi cronista no Dinheiro Vivo, Expresso, Metro e GQ.

A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.

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