Especial habitação: A procura

O mercado imobiliário residencial é impactado por vários fatores. E, na procura, há muitas condicionantes. Já ouviu falar do "efeito Ronaldo"?

Depois de nas últimas semanas ter falado sobre a demografia e a oferta no mercado de habitação residencial, proponho agora que discutamos a procura.

Desde o primeiro trimestre de 2015, apenas por uma vez o Índice de Preços de Habitação do Instituto Nacional de Estatística (INE) registou uma variação trimestral negativa. Foi no terceiro trimestre de 2020, no seguimento do mais longo e severo confinamento que qualquer residente em Portugal já experimentou.

Isto significa que, durante 34 trimestres consecutivos e mais de oito anos, apenas a maior pandemia dos últimos 100 anos conteve, num único trimestre, a evolução positiva dos preços das casas em Portugal.

Mas o que acontecer em 2015? Ou melhor, antes de 2015

Em maio de 2011, Portugal pediu 78 mil milhões de euros emprestados ao Fundo Monetário Internacional (FMI), à Comissão Europeia (CE) e ao Banco Central Europeu (BCE), ajuda que já havia sido pedida pela Grécia e Irlanda em 2010, e que haveria de ser seguida também por Espanha e Chipre em 2012 e 2013. Os governos destes países reconheciam perante eleitores, investidores e outros Estados, que poderiam deixar de conseguir pagar as suas responsabilidades.

Estamos a falar de cenários de pré-bancarrota. Como o custo de um financiamento varia na proporção da perceção de risco que ele inspira, consegue imaginar que os juros cobrados ao nosso país e aos bancos nacionais eram altos.

Em 2008, qualquer uma das taxas Euribor das quais se habitou a ouvir falar (3, 6 e 12 meses), chegou a ultrapassar a barreira dos 5%. E até 2013/14, primeiro sob os efeitos da crise hipotecária e depois num cenário de insolvência do próprio país, o acesso ao crédito em Portugal era mais estrito e mais caro.

O legado do "Super Mário"

A verdade é que houve mecanismos de ajuda externa a contribuir para que países como Portugal voltassem, aos poucos, a ganhar a confiança dos investidores que, por aquela altura, pareciam mais confortáveis com a ideia de investir na Alemanha. Ao dia de hoje poderá até parecer bizarro lembrar isto, mas à altura, face a um hipotético colapso do Euro, a perspetiva de se ficar com marcos em carteira parecia bem mais aliciante que colecionar escudos ou dracmas.

O famoso discurso de Mario Draghi (então presidente do BCE), segundo o qual, "Within our mandate, the ECB is ready to do whatever it takes to preserve the Euro" ("Dentro do nosso mandato, o BCE está pronto para fazer o que for necessário para preservar o Euro"), foi seguido de uma série de medidas das quais destaco as seguintes::

  1. Injeção de dinheiro na economia através de operações de financiamento de médio prazo aos bancos para que estes, por sua vez, disponibilizassem liquidez a empresas e particulares (mais dinheiro disponível para emprestar, e desagravamento das condições em que isso poderia acontecer). Parece-lhe vago? Só em 2018, e segundo o Banco de Portugal, concedeu-se 158% do montante de crédito concedido total concedido em 2012, 2013 e 2014.
  2. Estímulo à economia através da compra de dívida pública. Ao comprar dívida a Portugal (e a outros países com menos folga financeira), o BCE contribuiu para um aumento da procura destes títulos.

A procura de um dado produto gera um efeito de valorização desse mesmo bem (exemplo: havendo mais pessoas interessadas em comprar a sua casa, a perceção de valor que temos dela tende a crescer). Neste caso – estando nós a falar de dívida (um país recebe uma porção de dinheiro de um investidor e compromete-se, mediante um dado prazo, a amortizar o capital e a pagar um dado juro por ele) – a perceção de risco sobre esse mesmo empréstimo decresce e, por conseguinte, a sua taxa de juro também.

Segundo o jornal Expresso, a ação de Mario Draghi terá poupado, em 5 anos, 7,4 mil milhões de euros de juros ao nosso país.

Por isso sim... se tinha o dinheiro no banco a render perto de zero, tem todo o direito de responsabilizar Mario Dragui por isso.

Mas, lembre-se, é também graças à ação daquele economista italiano que lhe foi possível pagar cerca de 1% de TAN (Euribor + spread) num empréstimo para financiar a compra de casa. Porque a Euribor negociou em valores negativos. Mas também porque o spread cobrado pelos bancos desceu significativamente. E quer uma quer outra alteração, são também fruto da ação de Draghi.

As taxas de juro baixas representam uma dupla pressão para o aumento da procura de casas e, expectavelmente, nos seus preços.

Por um lado, tornam o crédito mais atrativo porque, num mercado pautado pelas taxas variáveis, estas ditam uma expetativa de encargos mensais baixa (que não é necessariamente verdade no médio/longo prazo, como todos pudemos constatar no último ano e meio).

Por outro, reduzem significativamente os investimentos interessantes no mercado financeiro, o que se traduz previsivelmente num maior número de investidores imobiliários.

Evolução das taxas Euribor a 3, 6 e 12 meses

Gráfico da evolução das taxas Euribor a 3, 6 e 12 meses entre janeiro de 2009 e junho de 2023
Evolução das taxas Euribor a 3, 6 e 12 meses entre janeiro de 2009 e junho de 2023. 
Fonte: Euribor Rates

O que nos dizem estes gráficos?

Uma análise das curvas dos dois gráficos sugere uma forte correlação inversa entre taxas de juro e compra de casa.

Ou seja, quanto mais baixas as taxas de juro, maior a procura de casa e a respetiva concessão de crédito (e o preciso contrário). O único momento em que isso não aconteceu foi durante a pandemia, pelas condições extraordinárias que vivemos nesse período.

Para ficar com uma noção mais clara dos números, em 2012 venderam-se menos de 63.000 casas e em 2013 pouco mais de 66.000. Mas em 2015, 2016, 2017 e 2018 venderam-se, respetivamente, cerca de 91.000, 107.000, 129.000, e 151.000 casas em Portugal. Ou seja, a descida das taxas de juro permitiu que grande parte das pessoas cumprisse o desejo de comprar uma casa. Incluindo aquelas que, presumivelmente, haviam sido obrigadas a adiar essa intenção durante os anos da crise.

O efeito Ronaldo

Há uma outra dimensão que, por não ser facilmente mensurável, creio ser frequentemente desvalorizada: a crescente visibilidade do país e a afirmação da sua marca a nível internacional.

No essencial acredito que há mais turistas em Portugal e mais pessoas a querer cá viver porque Portugal é bastante mais mediático do que era antes.

Lembra-se da última vez que teve de explicar a um não-europeu que Portugal é um país independente ou que a sua língua materna não é o espanhol? Eu lembro: foi há mais de 20 anos. E creio que grande parte da população mundial concordará que esses esclarecimentos parecem, à data de hoje, totalmente desnecessários.

Diria que Portugal atrai mais pessoas e investimento porque se tornou numa marca forte. A Expo 98, o Nobel de José Saramago no mesmo ano, as fintas de Luís Figo, o Euro 2004, o special one, a estadia de Durão Barroso em Bruxelas, Ronaldo, e os esforços de várias secretarias de Estado do Turismo. Siza Vieira, Souto Moura e outros arquitetos, artistas como Joana Vasconcelos e Vhils, Ronaldo uma vez mais, o sector têxtil, a indústria do calçado, o golo de Eder e o título europeu. Ou do facto de Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro se ter tornado tão ou mais mediático que Madonna, e de ela (e muitos outros) terem decidido cá morar ou comprar casa.

Se a concessão dos chamados golden visa e o estatuto de residente não habitual importam? Claro que importam. Mas não só importam muito menos que esta lista infindável de pessoas e momentos, como não teriam tido o mesmo impacto se todas estas coisas não tivessem acontecido no último quarto de século.

E tenho poucas dúvidas em afirmar que o "efeito Ronaldo" é, muito provavelmente, o primeiro dos motivos pelos quais, desde a década passada, é difícil de conceber que alguém com acesso à internet desconheça o que é e onde fica Portugal.

Não é possível mostrar um gráfico a dizer quantos milhares de milhões de pessoas no mundo sabem o que é Portugal em 1995, 2005 e 2015. Mas uma coisa é certa: para visitar ou investir num país estrangeiro é preciso que nos lembremos dele.

A procura estrangeira

Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas (INE), no segundo trimestre de 2023, 7,5% das casas foram vendidas a compradores com domicílio fiscal em outro país. Genericamente, costumamos ver este indicador ser traduzido como a porção de casas em Portugal que é comprada por cidadãos estrangeiros, mas, pessoalmente (e não estou sozinho nesta convicção, há investigadores a partilhá-la), este valor deverá expressar uma subestimação do número de casas que é compradas por pessoas de outras nacionalidades.

Ou seja, ainda que possa haver também alguns emigrantes portugueses a comprar casa tendo domicílio fiscal em outros países, acredita-se que haja uma porção muito significativa de estrangeiros que já tenha o seu domicílio fiscal em Portugal quando compra uma casa.

Em todo o caso, mesmo assumindo que estes 7,5% são uma representação fidedigna do mercado de compradores em Portugal, será que este é o único indicador para tentarmos aferir o impacto dos compradores estrangeiros no valor das casas em Portugal?

E o arrendamento?

A pressão da procura estrangeira sobre os preços da habitação não acontece apenas pelo número de não portugueses que compram casa em Portugal.

Em última análise, o valor de mercado de uma casa é um múltiplo daquilo que ela pode gerar no mercado de arrendamento. E não parece haver muitas dúvidas de que o valor das rendas cresceu muito por via da procura estrangeira.

Da minha experiência profissional como consultor imobiliário (que obviamente não tem qualquer relevância estatística), diria que um arrendamento no centro de Lisboa gera um contacto de uma família portuguesa em cada 10 ou 20 contactos. E porquê?

Atente por favor a este pequeno levantamento feito com base no Portal Imobiliário Idealista, no dia 4 de dezembro de 2023:

  • Dos 1.018 anúncios publicados no Idealista, de T2 para arrendar em Lisboa, 522 (51%) custavam 2.000 euros ou mais.
  • Dos 259 anúncios publicados no Idealista, de T2 para arrendar em Cascais, 146 (56%) custavam 2.000 euros ou mais.
  • Dos 390 anúncios publicados no Idealista, de T2 para arrendar no Porto, 98 (25%) custavam 2.000 euros ou mais.
  • Dos 101 anúncio publicados no Idealista, de T2 para arrendar em Matosinhos, 27 (27%) custavam 2.000 euros ou mais.

Creio que é relativamente consensual dizer que a esmagadora maioria das famílias portuguesas não pode pagar uma renda mensal de 2.000 euros.

É pertinente referir que Lisboa e Cascais e Porto e Matosinhos, são os concelhos mais caros das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Mas é igualmente pertinente lembrar que o salário médio nestas áreas metropolitanas em 2022 era de, respetivamente, 1.472 euros e 1.236 euros, de acordo com dados da Função José Neves. E note, por favor, que estes 4 municípios (num total de 308 em todo o país) representam 11% do total da população nacional.

O que quero demonstrar é que, mesmo aceitando que a procura estrangeira é responsável por apenas 7,5% das vendas, ela tem um impacto significativo nos preços da habitação em alguns sítios do país, porque:

  1. Como já vimos no capítulo dedicado à oferta, a procura estrangeira parece ser a suficiente para moldar a tipologia de oferta de habitação em algumas áreas geográficas. Boa parte da construção nova disponível nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto é orientada para um segmento elevado, para o qual se assume uma boa quota parte de compradores estrangeiros, o que parece ser validado pelo INE, quando nos diz que “nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa, o preço mediano (€/m2) das transações efetuadas por compradores com domicílio fiscal no estrangeiro superou, respetivamente em +61,3% e +91,6%, o preço das transações por compradores com domicílio fiscal em território nacional”.
  2. Os preços da habitação são também alavancados pelos valores de arrendamento que, em alguns concelhos, são incomportáveis para grande parte dos orçamentos familiares nacionais.
  3. A procura estrangeira também é responsável, direta e indiretamente, pela reabilitação urbana a que assistimos, um pouco por todo o país, com especial incidência nos centros de Lisboa e Porto. Ou seja, a subida de preço das casas deve-se também a uma valorização objetiva da condição dos próprios imóveis, com benefícios acrescidos para o património edificado da cidade.

Como vimos, a procura por habitações em Portugal foi catalisada por um conjunto de motivos. Dos quais destacaria o acesso facilitado ao crédito depois do período da Troika (como ficou conhecida a intervenção financeira do Fundo Monetário Internacional, da Comissão Europeia, e do Banco Central Europeu em Portugal), e o facto de, ao mesmo tempo, Portugal vir acumulando uma sucessiva e consistente maior visibilidade mediática, com impacto direto no número crescente de pessoas que, em cada ano que passava, decidem visitar e conhecer este país.

No próximo capítulo vou abordar três dos temas mais quentes quando se fala em habitação: os golden visa e o estatuto de residente não habitual

Em rigor, a sua discussão cabe ainda dentro do tema da procura. Mas como têm gerado debates tão intensos, optei por lhes conceder um capítulo.

Não se esqueça, pode aceder a todos os conteúdos do Especial Habitação através do portal do Doutor Finanças ou do A House in Lisbon.

Consultor imobiliário na KW e especialista no mercado residencial da Grande Lisboa, é autor do blogue A House in Lisbon e da série Minuto Imobiliário. Nascido em Lisboa e formado em Sociologia, foi gestor no BES, assinou o blogue O Alfaiate Lisboeta, e foi cronista no Dinheiro Vivo, Expresso, Metro e GQ.

A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.

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