Cultura e Lazer

A liberdade de cantar o que se sente

Cinquenta anos passados da Revolução dos Cravos, algumas das cantigas de intervenção continuam com certa atualidade… económica.

Cultura e Lazer

A liberdade de cantar o que se sente

Cinquenta anos passados da Revolução dos Cravos, algumas das cantigas de intervenção continuam com certa atualidade… económica.

Zeca Afonso – Os Vampiros (1963)

Originalmente incluído no disco “Baladas de Coimbra”, em que o artista se anunciava com a formalidade típica de então – “Dr. José Afonso” –, “Os Vampiros” tornar-se-ia uma bandeira das cantigas de intervenção política. Na letra, Zeca Afonso recorreu a metáforas e alusões, entrecortadas com palavras mais diretas e óbvias, para denunciar aqueles que andavam com pés de veludo, pela noite calada, ávidos de chupar o sangue fresco da manada. Ou, por outras palavras, aqueles que «comem tudo e não deixam nada», e com direito a repetição do verso, para que não reste nem uma migalha. Os vampiros, impostos pela lei da força, eram donos e senhores do país. «Mordomos do universo todo», bebiam vinho, dançavam a ronda, comiam tudo. Mas mesmo não deixando nada, foram incapazes de apagar a simbologia e força de uma canção. E, ao longo das décadas, não têm faltado novas vozes e roupagens para reforçar o estatuto do tema como um clássico da música portuguesa.

Leia ainda: A vidinha fácil dos músicos, não é verdade?

Adriano Correia de Oliveira - Cantar da emigração (1970)

Se durante décadas Portugal foi um país de gente que partia à procura de melhor vida, era necessária uma cantiga que contasse – e denunciasse – esse cantar da emigração. Na sua voz inconfundível, Adriano Correia de Oliveira pegou nos versos da poetisa espanhola Rosalía de Castro para nos dar o triste lamento dos que partiam da Galiza (o mesmo se podendo aplicar aos portugueses…). Há melancolia na saída, «Este parte, aquele parte, e todos, todos se vão», mas há também a dor dos que ficam nos «campos de solidão». São as mães que não têm filhos, os filhos que não têm pai, as viúvas de vivos mortos. Não há consolo para as «longas ausências mortais»; resta ao coração sofrer.   

Um ano depois, Adriano voltava ao mesmo assunto, com “Emigração”, versando sobre um homem que «deixa a terra onde infeliz nasceu, e fortuna busca noutras praias». Não era caso para o culpar, nem lhe rogar pragas nem castigos; afinal, talvez não houvesse alternativa.

Porque quem deixa o seu torrão natal,

E fora dos seus caminhos põe os pés,

Quando troca o certo pelo incerto.

Quando troca o certo pelo incerto.

Motivos há de ter.

Motivos há de ter.

Sérgio Godinho - Liberdade (1974)

Lançado seis meses depois do 25 de Abril de 1974, já sem o fantasma dos cortes da censura, este tema de Sérgio Godinho tornou-se famoso por parte do refrão, que poderia bem ser o esteio de um programa de Governo: a paz, o pão, habitação, saúde, educação. Em tempos de protesto e reivindicação, a letra anuncia que, após 48 anos de ditadura, e de uma vida a falar pela calada, havia urgência em querer tudo. «Só quer a vida cheia quem teve a vida parada» e Portugal estava novamente em marcha, embora a «liberdade a sério», segundo Godinho, ainda estivesse por instalar.

Só há liberdade a sério quando houver

Liberdade de mudar e decidir

Quando pertencer ao povo o que o povo produzir.

Video Thumbnail
ícone do formato do post

Leia ainda: Como soa a falta de dinheiro numa canção?

José Mário Branco – FMI (1981)

Quase a cumprir-se uma década do 25 de Abril, e já depois da primeira intervenção do FMI em Portugal (1977), José Mário Branco, dizia num espetáculo no Teatro Aberto, em Lisboa, um longo texto a zurzir, sem papas na língua, em tudo aquilo que o andava a incomodar. A posterior edição em vinil ultrapassava os 25 minutos de duração e, como os tempos já eram outros, não havia palavras censuradas.

Na introdução, o autor confessava que iria mostrar um pedaço especial da sua vida: «Trata-se de um texto escrito, assim de um só jorro, numa noite de fevereiro de 1979, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não seja muito atual.» Ainda assim, fazia questão de dar ao público o escrito na versão original, sem qualquer modificação, por achar que ainda havia algo de essencial naquelas palavras inspiradas nas ações e intenções do Fundo Monetário Internacional. «Entretém-te, meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti, se hás de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás de plantar tomate para o Canadá ou eucaliptos para o Japão, descansa, que eles tratam disso, se hás de comer bacalhau só nos anos bissextos ou se hás de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo! Descansa, não penses em mais nada, que até neste país de pelintras se acha normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar!»

O homem da história, que tanto parece falar com ele próprio como para nós, queria ver quem se ia abotoar com os 25 tostões de riqueza que, amanhã, cada um produziria nas suas oito horas de trabalho. «A ver quem vai ser capaz de te convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias, ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de São Pedro de Moel, que se some nas areias em plena praia». Um salário que nunca consegue desaguar. Um salário que nunca chega. E o FMI? Talvez fosse só um pretexto, uma finta, uma distração. Afinal, de quem era a culpa? Talvez tenha morrido solteira, pois dois anos depois, em 1983, a história repetir-se-ia, com nova entrada do FMI em Portugal.

Basta ouvir a veemência com que as palavras são ditas, gritadas, choradas, espumadas, para se perceber que aquele momento seria, de facto, irrepetível. A gravação revela-nos um artista e um cidadão num dos seus momentos mais altos. «A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez», diz-nos, no final. «Sou português, pequeno-burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim, para cantar e para o resto.»

Depois, aplausos, uma concertina, uma flauta, um canto que diminui de intensidade até desaparecer. Acabou o disco. Acabou o texto. Mas o 25 de Abril, esse, prossegue.

Video Thumbnail
ícone do formato do post

Leia ainda: Vivemos num mundo materialista, cantam elas

A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.

Partilhe este artigo
Tem dúvidas sobre o assunto deste artigo?

No Fórum Finanças Pessoais irá encontrar uma grande comunidade que discute temas ligados à Poupança e Investimentos.
Visite o fórum e coloque a sua questão. A sua pergunta pode ajudar outras pessoas.

Ir para o Fórum Finanças Pessoais
Deixe o seu comentário

Indique o seu nome

Insira um e-mail válido

Fique a par das novidades

Receba uma seleção de artigos que escolhemos para si.

Ative as notificações do browser para receber a seleção de artigos que escolhemos para si.

Ative as notificações do browser
Obrigado pela subscrição

Queremos ajudá-lo a gerir melhor a saúde da sua carteira.

Não fique de fora

Esta seleção de artigos vai ajudá-lo a gerir melhor a sua saúde financeira.