Imagem onde uma mulher compra bijuteria barata online

É inegável a revolução que o comércio online provocou na vida dos consumidores. A facilidade com que se encontra tudo aquilo que sempre se quis (e tudo aquilo que não se sabia que se queria), a preços módicos, e entregue à porta de casa… Basta uma série de cliques. Clique, clique, clique e resta esperar pelo toque à campainha. Mas que acontece depois de concretizarmos a encomenda? O que é aquilo que não está à mostra, que é invisível aos nossos olhos? Eis dois filmes que nos dão a perspetiva da outra face da economia gig.

Uma portuguesa perdida num armazém

On Falling, filme português de 2024, escrito e realizado por Laura Carreira, acompanha a protagonista, Aurora, trabalhadora num armazém da Grã-Bretanha. Ela é uma entre dezenas de “pickers” que percorrem longos corredores para recolher os produtos provenientes do comércio online. A sua tarefa consiste em percorrer quilómetros dentro de um espaço sem luz natural, encontrar os produtos da lista que lhe deram entre os milhares que repousam pelas prateleiras, catalogá-los e metê-los num carrinho de compras. Após terminar a tarefa, estes colhedores de encomendas terão novas listas à sua espera. Hora após hora, dia após dia.

Se Aurora tiver um bom desempenho, em termos de ritmo e eficácia, é capaz de receber uma recompensa do empregador: poder escolher um chocolate de uma caixa com barras sortidas. Mas, se estiver cansada e caminhar mais lentamente, irão procurá-la no labirinto do armazém para lhe pedir que acelere o passo. E neste ciclo repetitivo se vai consumindo, mais do que a semana ou o mês, a existência. Aurora nem consegue ter energia para ter uma vida pessoal. Partilha um apartamento com outros trabalhadores da economia gig, todos de diferentes nacionalidades, onde tem direito a um quarto. Na cozinha comum, ocupa uma prateleira num armário e um espacinho no frigorífico. Há horas específicas para usar o chuveiro.

On Falling

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Eis o que andamos a encomendar online

O que Aurora ganha não dá para ter nem casa nem carro próprio. Basta um imprevisto, como um telemóvel que cai no chão e deixa de funcionar, e fica até sem dinheiro para pagar o gasóleo à amiga que lhe dá boleia para o trabalho. Os almoços, de repente, passam a ser sandes ou uma barra energética. Tal como o título do filme indica, acompanhamos alguém que se sente a cair no abismo. A própria socialização é um esforço. Nas pausas do trabalho no armazém, a maior parte das pessoas opta por enfiar-se nos seus telemóveis; não há tempo para conhecer os colegas e as ligações que se estabelecem sustentam-se em coisas superficiais, como a série que se anda a ver. No apartamento partilhado, a maior parte dos hóspedes cruza-se na cozinha; um cumprimento afável, umas frases soltas, e voltam a fechar-se nos respetivos quartos.

Mas se chamámos este filme para aqui é porque os percursos de Aurora no armazém nos mostram, sem pressas, a quantidade de produtos que andamos a importar de vários lados do mundo. Cada coisa em que ela pega representa um clique. E esta sucessão de cliques, assim materializada diante do espectador, vai-nos fazendo pensar em tudo aquilo que já encomendámos online. Nos seus percursos, gerados como uma espécie de caça ao tesouro para tornar a tarefa menos chata, Aurora encontra de tudo. Até uma corda que pode servir para alguém se enforcar.

E agora em grande velocidade, até à casa do cliente

Bom, pensemos em encomendas menos perturbadoras, ao conhecermos o protagonista do filme Sorry We Missed You (2019), que em Portugal obteve o título “Passámos por Cá”. Quem passou pela nossa casa foi Ricky, um dos muitos condutores que entrega as encomendas colhidas pelas Auroras da economia gig. Aqui, as horas passadas nos armazéns transformam-se numa frenética corrida nas estradas. Ricky, um homem com mulher e filhos, achou que tinha deparado com uma oportunidade de ouro para resolver os problemas financeiros da família: se comprasse uma carrinha de distribuição, estaria a criar o seu próprio emprego e a garantir um trabalho duradouro e rentável.

Porém, tal como Aurora, cujo rendimento mal dá para pagar as contas básicas, o condutor Rick vê-se rapidamente submerso num redemoinho de entregas sem fim. Trabalha 90 horas por semana, subcontratado por um patrão que não demonstra o mínimo interesse pelos dramas familiares dos seus estafetas. Ricky nunca pode parar. Come mal e rapidamente, entre entregas, e vai repondo energias com snacks cheios de açúcar. Em casa, mal consegue ver ou estar com os filhos, e a família vai-se desagregando.

Sorry we missed you

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A economia gig tem uma parte de selva

E depois são os artigos que se perdem ou se danificam e que não estão cobertos pelo seguro. Os dias em que tem de trabalhar mesmo estando doente. A inexistência de férias, a não ser que esteja disposto a não ganhar dinheiro durante esses dias. Afinal, o autoemprego, que parecia a solução para todos os males, está longe de ser o paraíso anunciado. Por mais horas que Ricky trabalhe, o desafogo financeiro nunca chega. O dinheiro, se existe, vai parar a outras mãos. Como diz alguém numa análise ao filme publicada no site imdb, «isto lá fora é uma selva e a triste realidade é que o mundo está cheio de pessoas e empresas dispostas a tirar partido de nós».

Chegados aqui, impõe-se nova pergunta: que interessa isto tudo a quem recebe as suas encomendas mesmo à porta de casa? Que interessam estas histórias do outro lado da cortina a quem fica irritado porque o estafeta passou lá por casa quando não estava ninguém e colocou um papel na caixa do correio a dizer que se tem de ir buscar a encomenda a certo sítio?

E se pensarmos duas vezes, antes de fazer clique?

Talvez estes filmes possam ter algo para todos nós. Talvez possamos pensar que a poupança, tanto a do nosso agregado familiar como a dos recursos do planeta, também pode estar associada à quantidade de vezes que fazemos “clique” para acrescentar coisas ao nosso carrinho de compras virtual. Pensemos no impacto ambiental de mandar vir uma coisa do outro lado do mundo em vez de ir comprá-la à loja da esquina. Pensemos na quantidade de tralha que acumulámos nas gavetas, nos armários, na garagem, na arrecadação. Pensemos nas coisas que encomendámos e nunca usámos. Pensemos nas coisas que mandámos vir e rapidamente se estragaram ou deixaram de ter utilidade. Façamos a soma de todas essas parcelas de coisas tão baratas para verificarmos quanto nos custaram, de facto, as compras feitas a partir do sofá ou da cadeira do escritório.

No fundo, pensemos se precisamos mais deste ou daquele clique. Bem vistas as coisas, talvez não. E, ainda assim… é tudo tão fácil e tão barato…

Clique. Clique. Clique.

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