Nos Estados Unidos, é tradição que a película It’s a Wonderful Life (1946) passe na televisão durante a época natalícia. Mas há muitas famílias, por todo o mundo, que fazem desta história um momento especial desta época festiva. E há boas razões para isso.
O argumento não podia ser mais simples: um anjo é enviado à Terra com a tarefa de ajudar um homem de negócios desesperado. George Bailey, interpretado pelo insuperável James Stewart, é o homem em aflição. No cerne do seu problema, está um desfasamento entre duas formas de encarar o mundo dos negócios. O pai de George foi o fundador de uma pequena empresa familiar: a Building & Loan, direcionada para o financiamento de hipotecas acessíveis aos habitantes de Bedford Falls. Porém, esta tentativa de ajudar o próximo a ter uma vida digna é algo que desagrada a Mr. Potter, um homem rico e avarento que se tornou dono de quase tudo na pequena localidade. Nas casas de que é proprietário, cobra rendas exorbitantes aos inquilinos. E, para dominar a economia local a bel-prazer, só lhe falta dar a machadada final na empresa dos Bailey, de que é um dos acionistas.
Compaixão vs. ganância
A certa altura, deparamos com um diálogo que expõe na perfeição as duas personalidades em confronto.
Mr. Potter: Você fez alguma pressão a sério para que essas pessoas pagassem as suas prestações?
Pai Bailey: São tempos difíceis. Muitas destas pessoas estão sem trabalho.
Mr. Potter: Bem, então despeje-os.
Pai Bailey: Não posso fazer isso. São famílias com crianças.
Mr. Potter: Essas crianças não são minhas.
Pai Bailey: Mas são filhos de alguém, Mr. Potter.
Mr. Potter: Mas você está a gerir um negócio ou uma instituição de caridade? Com o meu dinheiro, nem pensar.
Pai Bailey: Porque é que é uma pessoa tão teimosa, Sr. Potter? Não tem família, não tem filhos… Não vai conseguir gastar todo o dinheiro que tem.
Mr. Potter: Oh, se calhar devia dar esse dinheiro a falhados miseráveis como você e aquele idiota do seu irmão, para o gastarem por mim!
Na verdade, o próprio George Bailey não se via a seguir as pisadas do pai. O jovem tinha ambições maiores; fora uma série de acontecimentos que o obrigara a ficar à frente da empresa familiar. Ainda assim, os princípios em que se criara bastam para recusar a tentativa de suborno de Mr. Potter, sob a promessa de muitas viagens e um salário chorudo, caso largasse a firma do pai e fosse trabalhar para ele. Nada feito. É então que, sem mais argumentos, o ricalhaço recorre a um plano sujo. A “perda” de oito mil dólares pelo tio de George cria a oportunidade. Se o dinheiro não for encontrado, isso significará a bancarrota da D&L e até a possibilidade de George ir parar à prisão, sob a acusação de desfalque e fraude bancária.

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Isto é capaz de estar tudo ligado…
A angústia do pequeno empresário cresce até aos limites do suportável. É então que o suicídio começa a pairar na cabeça de George como a única saída possível e que ouvimos as preces a pedir intervenção divina. São as filhas preocupadas com o pai. «Por favor, Deus, algo se passa com o papá», diz uma; “Por favor, traz o papá de volta”, pede outra. É uma mãe que pede ajuda para o seu filho. É uma mulher que pede a Nosso Senhor que olhe pelo marido que tanto ama. E há ainda os amigos que intercedem junto de Deus, dando boas justificações para uma intervenção divina. «Devo tudo ao George Bailey», diz um. «Ele nunca pensa nele, Senhor, é por isso que está em apuros», explica outro. «O George é um bom tipo», conclui outro. «Dá-lhe uma folga, Senhor».
O título original do filme remete-nos para a ideia de que a vida é uma coisa maravilhosa. Mas sabemos como, por vezes, é difícil descobrir esse lado encantador. Cabe ao inexperiente anjo da guarda Clarence, que ainda nem ganhou direito às suas asas, mostrar ao homem prestes a matar-se que não falhou na vida. Que as coisas, e as pessoas, não estão assim tão desligadas umas das outras. «É estranho, não é? A vida de cada homem toca muitas outras vidas», diz Clarence. E, se esse homem deixar de estar presente, bem, isso é capaz de deixar um grande vazio.
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Vidas paralelas (antes do multiverso ser uma moda)
Curiosamente, esta obra-prima realizada por Frank Capra é também um precursor dos agora muito em voga multiversos, pois o anjo acaba por mostrar ao jovem Bailey como seria diferente o percurso de várias pessoas, caso George nunca tivesse nascido. Desde logo, a localidade passaria a chamar-se Pottersville, em vez de Bedford Falls. Ou seja, Mr. Potter sairia vencedor. Mas, no universo “real”, aquele em que um anjo o salvou, George terá de encontrar um verdadeiro milagre. O anjo por acaso não terá oito mil dólares nalgum bolso? «Não, no Céu não usamos dinheiro», explica Clarence. «Olha, pá, aqui em baixo [o dinheiro] é coisa que dá muito jeito!», responde George.
Talvez o milagre possa estar no mundo terreno, caso os seres humanos deem as mãos para se auxiliarem uns aos outros. Será essa uma das mensagens do filme: a força da comunidade, a importância da amizade, a capacidade de os mais frágeis, se unidos, poderem enfrentar os mais fortes.

Desejar uma casa própria não é crime
Um dos discursos de George Bailey, dirigido ao poderoso Mr. Potter e seus amigos, bem se poderia aplicar a outros filmes, outras cidades, outros países, outras vidas. A princípio, escutamos um filho com dificuldade em compreender porque é que o pai fundou um negócio de tostões; nem sequer servira para amealhar o suficiente de forma a conseguir enviar os filhos para a universidade. E, ainda assim, George mostra-se orgulhoso do pai. Afinal, ele ajudara algumas pessoas a sair dos bairros de lata em que viviam. Que mal havia nisso? «Isso não fez dessas pessoas melhores cidadãos?», pergunta George a Mr. Potter. «Não as tornou melhores clientes? Você disse que elas tinham de esperar, poupar o dinheiro delas, antes sequer de pensarem em ter uma casa decente. Esperar até quando? Até os filhos ficarem crescidos e os deixarem? Até estarem tão velhos e quebrantados que… Você tem ideia de quanto tempo leva a um trabalhador para conseguir poupar 5 mil dólares?»
No fundo, o espírito e o caráter do pai entranharam-se em George. Talvez o patriarca Bailey tivesse resumido o seu propósito num par de frases: «Sabes, George, sinto que, de uma forma modesta, estamos a fazer algo de importante. A satisfazer um desejo fundamental. Está enraizado na natureza humana que um homem queira ter o seu próprio teto, as suas paredes, a sua lareira, e nós, no nosso acanhado e decrépito escritório, ajudamo-lo a conseguir essas coisas.»
Ao longo das décadas, muitos slogans se inventaram para promover Do Céu Caiu uma Estrela. Fiquemos por este: «Maravilhoso! Maravilhoso! Maravilhoso! Que outra coisa poderia ser?»
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