Um dos lados mais interessantes dos bons filmes biográficos é ficarmos a conhecer facetas menos exploradas das pessoas famosas. Nascida em 1883, Gabrielle Chanel cedo perdeu os pais. Colocada numa escola conventual, acabaria por aprender os rudimentos da costura. Aos 18 anos, empregou-se numa loja de meias de senhora. Bordava e cosia, mas, nas horas livres, era cantora em cafés-concerto. A alcunha Coco viria desses tempos, sobrepondo-se para o resto da vida ao nome de batismo.
A viagem prometida por “Coco Avant Chanel” (2009) pelo período inicial da vida de Gabrielle, servida pela excelente interpretação de Audrey Tautou, permite-nos assistir à progressiva recolha de influências visuais que inspirariam uma revolução na moda feminina. Até então, as mulheres viviam espartilhadas em roupas que lhes moldavam a figura, sem que se tivesse em conta o seu próprio conforto; o que interessava era ir ao encontro do gosto dos homens…
O empreendedorismo requer coragem
Quando foi exposta à sociedade elegante que assistia às corridas de cavalos, Coco ficou especialmente impressionada pelos chapéus das senhoras: pareciam-lhe tartes assentes em cabeças. Era preciso simplificar e, para as suas criações mais sóbrias, a jovem órfã usaria ideias tiradas dos hábitos das freiras ou das camisolas às riscas dos pescadores. Aliás, a roupa masculina, desde os pijamas aos casacos, mostrava-se uma grande fonte de inspiração. Para a criadora, não havia fronteiras ideológicas sobre o que seria permitido ou acertado na moda destinada às mulheres. Despojadas do amontoado de ornamentos de outras épocas, estas ganhavam personalidade e até liberdade de movimentos. A revolução foi tão grande que um simples vestido de baile preto acabaria por transformar-se num clássico intemporal.
Embora o filme não nos mostre os tempos áureos da astuta mulher de negócios, serve perfeitamente para evidenciar como um olhar diferente, que consiga resistir aos comentários jocosos, pode questionar o status quo vigente. É desse modo corajoso que se desbravam novos caminhos. Mas, se Chanel foi revolucionária no design e no corte, também fez a diferença por ter sido uma mulher que se imiscuiu com estrondoso sucesso num universo marcadamente masculino. Apoiada financeiramente por Arthur Capel para que fundasse o seu próprio negócio de chapéus, o sucesso de Coco seria meteórico, com a abertura de boutiques em Paris, Biarritz e Cannes. E, mesmo que houvesse entre os dois um relacionamento romântico, rapidamente a dívida foi paga até ao último cêntimo. Até nisso Coco inovava: nada de dependência monetária de um homem. «Uma mulher que corta o seu próprio cabelo, está prestes a mudar a sua vida», diz-lhe, a certa altura, um personagem masculino. E estava. Ela era uma empreendedora.

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Esquema de pirâmide ou marketing multinível?
De certa forma, mudar de vida também era uma das promessas da empreendedora DeAnne Brady, cofundadora da empresa LulaRoe, juntamente com o seu marido. O documentário “LulaRich” (2021) acompanha a ascensão – e a queda – desta startup de leggings e roupa de senhora que rapidamente se transformou num império, com uma faturação a atingir o milhar de milhões. Ao longo de quatro episódios, abrem-se as portas para os meandros da marca LulaRoe e do seu modelo de negócio assente no marketing multinível. Através de testemunhos de revendedoras e funcionárias – devidamente contrabalançados com as entrevistas ao próprio casal de empresários –, analisam-se as controversas táticas de vendas que geraram um crescimento extraordinário e também uma certa cultura tóxica que se ia propagando pela empresa.

O sucesso que inicialmente parecia ao alcance de todos os que aderissem viria a dar lugar a uma frustração generalizada e até à acusação de que, afinal, se estaria perante mais um esquema de pirâmide. Como já vimos noutros casos, a fronteira entre o marketing de rede e o esquema de pirâmide é demasiado ténue para que seja este documentário a fornecer uma resposta inequívoca. Nos Estados Unidos, especificamente, a falta de legislação clara nesta área permite a proliferação de casos idênticos ao da marca LulaRoe. Por isso, o mais importante destes episódios talvez resida na demonstração do impacto que este tipo de negócio pode ter nos envolvidos; se é verdade que uns quantos conseguem singrar, também parece provado que uns milhares podem sofrer um impacto negativo – ou até devastador – nas suas vidas.
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Se falhares, ficas a saber que a culpa é tua
LulaRich é taxativo ao mostrar como é fácil entrar-se numa espiral autodestrutiva. Vários testemunhos evidenciam que as pessoas acabam por investir cada vez mais tempo e dinheiro na tentativa de criar o seu próprio emprego, levadas pelo isco de atingirem bem-estar financeiro e até riqueza, sem se aperceberem de que apenas se estão a afundar cada vez mais. E quando falham? Todos os dedos parecem apontados para si próprias. Se os outros conseguem, porque não consigo eu? A culpa deve ser minha, concluem. E esse sentimento de incapacidade até pode ser reforçado quando alguém do topo da hierarquia da empresa lhes diz, sem qualquer condescendência, que falharam porque não se esforçaram (ou investiram) o suficiente.
Mas não. Falham porque, ao contrário do prometido, nestes modelos de negócio o sol não pode brilhar para todos. Por mais que alguém o jure ou prometa, não é todos os dias que nasce uma Coco Chanel.
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