A sequência mais extraordinária da carreira de Bruce Springsteen deu-nos, no início da década de 1980, dois álbuns incríveis. Nessa época, todos se agitaram ao som de Dancing in the Dark, mas antes dessa batida dançável, The Boss compôs o que será talvez o seu disco com maiores doses de negrume e desespero: «Nebraska» (1982). E entre os êxitos estrondosos de «Born in the USA» (1984), como a faixa que dá nome ao álbum, ainda arranjou espaço para um par de canções sobre as vidas complicadas dos operários.
«Johnny 99» (Nebraska, 1982)
Neste tema, o protagonista Ralph confronta-se com o fecho da fábrica de automóveis em que trabalhava. Após tentar encontrar trabalho, sem sucesso, o jovem mete-se nos copos. Uma noite de misturas de vinho e gin deixa-o demasiado embriagado. O desespero leva-o a pegar numa pistola e – supostamente num assalto a uma loja que corre mal –, acaba por matar um empregado noturno. «Agora chamam-no Johnny 99», diz-se no refrão. Porquê? Porque acabou detido e condenado à prisão. A pena de 98 anos e meio, arredondada, dava 99, disse o juiz.
Antes de ser levado pelo oficial de justiça, perguntam a Johnny se quer dizer alguma coisa. E ele lá expõe a sua justiça: «Senhor juiz, tenho dívidas que nenhum homem honesto conseguiria pagar», confessa. O banco ficou-lhe até com a casa. «Não estou a dizer que isso faz de mim um homem inocente / mas foram muito mais coisas destas que puseram aquela arma na minha mão». A vida dele, naquela sentença, estava acabada. «Acredito que o melhor era morrer.» Não poderia o juiz reclinar-se na cadeira e repensar a coisa? Mandar executar o Johnny 99?
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«Used Cars» (Nebraska, 1982)
Neste tema que Bruce reconheceu como sendo autobiográfico, conta-se a história de um pai que leva a família até ao stand de carros usados, por não ter dinheiro para comprar um novo. Escolhido o modelo, a letra mostra-nos a preocupação da mulher (a rodar a aliança no seu dedo), ao constatar que o vendedor não lhes quer fazer um desconto. Mesmo olhando para as mãos do marido, envelhecidas por causa do trabalho manual, o homem do stand assegura-lhes que não pode ser.
A chegada ao bairro é um acontecimento, com os vizinhos a virem de todo o lado para apreciarem o carro “novo”. Mas, para o filho, a sensação é bem diferente. «O meu pai sua no mesmo trabalho de manhã a manhã / Eu caminho para casa nas mesmas ruas sujas em que nasci». Ao som da buzina em que a irmã teima em carregar, o narrador tem uma certeza sobre o seu futuro: «No dia em que me calhar a sorte grande / Nunca mais vou andar num carro usado.»
«Darlington County» (Born in the USA, 1984)
Escrito inicialmente para o disco Darkness on the Edge of Town, este Darlington County relata uma viagem de dois amigos à procura de trabalho. Saídos de Nova Iorque, conduziram 800 milhas sem ver um polícia, com música rock aos berros e a cantarem «Sha la la la la la la la la, Sha la la la la la la» (o refrão da canção). O destino era Darlington County, onde o tio de um deles tinha um contacto no sindicato. Porém, uma vez lá chegados, nada do trabalho prometido. E assim se gastam depressa demais os 200 dólares que levavam, em noitadas, a armarem-se em ricaços, para tentarem engatar raparigas… Não tarda e já nem sabem um do outro. «Rapariga sentada à janela, / Não vejo o meu amigo há sete dias». Ao procurar um funcionário do condado, este diz-lhe que o Wayne não trabalhou, portanto não recebeu nada. Ninguém sabe dele, pelos vistos, e é hora de partir. Será à saída de Darlington County que o narrador reencontra o amigo, «algemado ao para-choques» de um carro da polícia estadual.
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«Working on the Highway» (Born in the USA)
Para o protagonista deste tema, nascer nos Estados Unidos é ter de trabalhar na autoestrada 95. É sexta-feira e, depois de uma semana árdua, todos pensam no fim de semana enquanto tentam limpar a sujidade da pele. E, se alguns vão ter com as famílias, outros vão à procura de sarilhos. Um par de noites e voltam ao trabalho. Dias inteiros a colocar asfalto, a perfurar pedregulhos, a sinalizar as obras, enquanto os automóveis passam por eles… Ao conhecer uma miúda num baile, o jovem da canção sonha com outros horizontes. Ter uma vida melhor do que a que tem.
Como é poupado, até consegue pôr algum dinheiro de lado. Mas ao apresentar-se ao pai da rapariga, este não tem grande coisa a dizer-lhe. «Rapaz, não vês que ela é apenas uma rapariguinha? Ela não sabe nada deste mundo tão cruel». Dali ao abismo é um passo. O casalinho foge para a Flórida, mas os irmãos da rapariga vão buscá-los. No regresso, há um procurador e um juiz dispostos a pô-lo na cadeia. E os dias do rapaz voltam a ser de trabalho na estrada, mas agora na condição de prisioneiro.
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