Cultura e Lazer

Alimentos e provérbios: Da fome à gula

Existem centenas de rifões associados à comida. Se somarmos os conselhos agrícolas, passamos o milhar.

Celebrado a 18 de junho, o Dia Mundial da Gastronomia Sustentável pretende chamar a atenção para os modos de cultivo, transporte e consumo dos alimentos. Esta maior consciência do caminho que a comida percorre desde a sua origem até ao nosso prato pode gerar contributos nos campos da segurança alimentar, da nutrição, da adequada produção de alimentos e da conservação da biodiversidade, refere uma nota do Centro de Informação Europeia.

No site das Nações Unidas, tenta-se responder a interrogações como “Porque é que me devo importar com isso?”, relembrando que, segundo as projeções, em 2050 haverá 9 mil milhões de bocas para alimentar no mundo. E, no entanto, cerca de um terço da comida atualmente produzida acaba desperdiçada ou no lixo. E há também outro lado da moeda: o problema crescente da obesidade. Por tudo isto, urge despertar as consciências para a utilização mais racional dos recursos naturais – apoiando os produtores locais –, e dos próprios alimentos, promovendo uma alimentação saudável.

Um receituário proverbial inesgotável

Portugal é um país reconhecido pela sua gastronomia, mas não é sobre receitas o nosso texto: é sobre palavras. Nos nossos provérbios, a alimentação é o GRANDE tema. O Dicionário de Máximas, Adágios e Provérbios lista 789 provérbios sobre o assunto. É a categoria com maior número de entradas; nem o amor consegue suplantá-la (447 entradas). E, se juntarmos os provérbios recolhidos pelo major Jaime Hespanha sobre o tema da agricultura, são mais 542, com umas centenas a ditar quando se semeia ou apanha o quê.

No imaginário português, a comida aparece muitas vezes associada à poupança e a lições de vida. «Poupa na cozinha e aumentarás a tua casinha», defende-se, pois «Quanto mais a cozinha é gorda, mais o testamento é magro». Convenhamos que, por vezes, enchemos demasiado o prato, não? «Quem come e deixa, duas vezes põe a mesa», bem podia ser o título de um livro de cozinha sobre aproveitamento de restos.

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O dinheiro dita o que se põe na mesa

A gula, um dos pecados mortais para a cristandade, espreita por máximas como «Come para viver, não vivas para comer» ou o mais sentencioso e fúnebre «Das grandes ceias estão as campas cheias». Gastar demasiado com comida também não será bom para a bolsa: «Os loucos dão os banquetes, e os avisados comem-nos.» É que «Muito come o tolo, mas mais tolo é quem lho dá». O mais sensato seria que cada um gastasse o que pode – «Governa a tua boca, conforme a tua bolsa.» –, mas que também não poupasse demasiado naquilo que não deve. Afinal, o ser humano precisa de comer para sobreviver, pelo que «Antes morrer arruinado, que viver esfaimado».

Para o povo, nos tempos de escassez não deveria haver privilégios para alguns e tormentos para outros: «Coma o mau bocado quem comeu o bom.» Mas no mundo real, a riqueza e a pobreza não são uma questão de justiça, e se «o rico, come; o pobre, alimenta-se». Em demasiadas ocasiões, em demasiadas partes do mundo, «a fome não espera pelo tempo de fartura». Esse é o tempo de puxar pela imaginação, pelo engenho – «A fome é o melhor tempero» –, pelo que se diz que «A fome é boa cozinheira».

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Luxos e riquezas? Há quem lhes chame crime

«Com açúcar e com mel, até pedras sabem bem», relembra um provérbio sem utilidade prática, mas que serve para abrir caminho à crueza de um «Quem tem fome, tudo come». O que pode ser realmente útil é pensarmos um pouco mais nisto da gastronomia, preferencialmente sustentável, tema intrinsecamente ligado à economia mundial; é tema em que todos podemos ter impacto, na forma de comprarmos e de consumirmos. «Guarda que comer, não guardes que fazer» impele-nos para a ação. E a Coleccao de Pensamentos, Máximas e Proverbios, organizada pelo conselheiro José Joaquim Rodrigues de Bastos em 1841, trazia já alguns provérbios de intervenção social e política:

«Um real despendido em luxo será um crime, enquanto entre vós houver alguem que tenha fome.»

«A fome chega á porta do official, mas não ousa entrar.»

«A mesa do rico insulta a fome do pobre.»

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Um provérbio antigo que deu em cantiga popularucha

Pelos vistos, desde há muito que o rifoneiro português tem despertado consciências em relação à agricultura sustentável, ao desperdício de comida, à fome, à desigualdade. Mas, para a refeição não ficar demasiado pesada, fechemos com uma curiosidade: se por acaso conhece uma música popular que fala de bacalhau e alho no refrão, pois saiba que não se trata de uma malandrice ou trocadilho moderno: o dicionário coligido pelo major Hespanha, em 1936, já refere o dito provérbio, sob a forma “O bacalhau quere alho”.

É caso para dizer que o então jovem Saúl, agarrado ao seu acordeão, foi inspirar-se na tradição para ter sucesso no presente, assim ao estilo de «Juntar a fome à vontade de comer».

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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.

A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.

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