Depois de alcançado o êxito com o álbum Born to Run, Bruce Springsteen iniciou um período de ouro, ou de platina, diamante, seja lá o que for, com dois álbuns excecionais: Darkness on the Edge of Town (1978) e The River (1980), repletos de temas que ficaram clássicos. E, como quase sempre, com canções sobre os trabalhadores fabris, que nos Estados Unidos são conhecidos por blue collar (colarinho azul), termo derivado das roupas usadas nas fábricas e oficinas – os fato-macaco, etc. –, em contraste com os trabalhadores de colarinho branco, ou seja, os executivos e empregados de escritório que, regra geral, usavam camisa branca e gravata. Ouçamos então quatro temas do artista que ficou conhecido como The Boss (o patrão), mas que nunca perdeu a ligação ao imaginário em que cresceu.
«Factory» (Darkness in the Edge on Town, 1978)
A história de Springsteen com o mundo dos operários bem podia começar com este tema, intitulado Fábrica. É o retrato dos homens que se levantam de manhãzinha, ao som do apito da fábrica a chamá-los. Ao saírem de casa levam o almoço na lancheira. Para o narrador da canção, é o pai que vai de madrugada para a fábrica, debaixo de chuva torrencial, e que passa o dia inteiro a trabalhar no duro. Nessa labuta dolorosa, em troca de uma vida, o homem vai perdendo a audição. «Ao final do dia, o apito da fábrica grita / os homens atravessam os portões com a morte no olhar». Vão cansados. Talvez frustrados, irritados com a sua existência, pois o último verso leva-nos a pensar que poderão bater em alguém. «E podes acreditar, miúdo / Hoje à noite alguém vai se magoar». Talvez Bruce esteja a falar de si mesmo. Talvez da mãe. Talvez apenas de todos os familiares em que estes homens, fisicamente exaustos, mentalmente perturbados, acabam por descarregar.
Leia ainda: Homens à cata de cêntimos
«Badlands» (Darkness on the Edge of Town, 1978)
Neste tema, a voz é a de um rapaz que sonha com uma vida diferente para si. A letra mostra-nos que ele está cheio de raiva. Sente-se preso numa encruzilhada, sem perceber o que está escrito nas direções. Mas, ao falar para uma rapariga, ele assegura que não quer repetir as mesmas cenas a que foi assistindo ao crescer. «Querida, eu quero o coração, quero a alma, quero ter controle aqui e agora». Quer poder realizar o seu sonho. Não quer perder tempo à espera, porque se pode gastar uma vida inteira «à espera de um momento que nunca chega». O jovem não está disposto a ficar parado. Ele vai viver dia a dia, com ganas, até que aquelas terras baldias passem a tratá-lo bem. Ele já sabe o que é trabalhar no campo até ficar com as costas queimadas. Já sabe o que é estar debaixo de um carro até perceber quanto custa ganhar a vida. Mas tem algo a dizer sobre isso: «O homem pobre quer ser rico, o homem rico quer ser rei». E um rei, bem, um rei só fica satisfeito quando reina sobre tudo e todos. Felizmente, o rapaz acredita no amor da rapariga, acredita na fé que o pode salvar, e acredita na esperança de que, um dia, conseguirá sobrepor-se a tudo o resto.
«The Price You Pay» (The River, 1980)
Dois anos depois, Bruce gravava um poema sobre as consequências das nossas escolhas. Há um preço a pagar por se ter um sonho e tentar realizá-lo. Aqui, o protagonista parece ter fugido do seu lugar (talvez as terras baldias?). Decidiu arriscar, meteu-se no carro com a namorada e atravessou o deserto. Conduziu até ao fim da autoestrada, à procura da terra prometida de que lhe tinham falado. Andaram muito, noite e dia, mas não a terão encontrado em nenhuma paragem. Foram apanhados num sonho em que tudo corre mal. Mais um pesadelo do que um sonho. «Logo a seguir à linha estadual, um estranho que por ali passava colocou uma tabuleta / A contar os homens tombados por causa do preço a pagar».
Um desespero sem remédio? Não. É preciso aguentar e lutar. E à rapariga que o acompanha, o protagonista promete que, ainda antes de o dia acabar, ele vai arrancar aquela tabuleta e deitá-la fora.
Leia ainda: As mulheres também querem dinheiro, cantam elas
«The River» (The River, 1980)
A canção que intitula o álbum de 1980 é uma das mais célebres de toda a carreira de Bruce Springsteen. A harmónica dá um tom especialmente nostálgico a esta história (inspirada na irmã e no cunhado do artista), passada numa terreola situada num vale. Os protagonistas são dois jovens namorados. Conheceram-se no liceu quando ela (Mary) tinha apenas 17 anos. Costumavam passear de carro até saírem do vale e ficarem rodeados de campos verdes. Iam até ao rio e mergulhavam. E depois… Depois, o rapaz engravidou Mary e tudo mudou na vida de ambos. Quando fez 19 anos, o presente dele foi um casaco para o casamento e um cartão do sindicato. Mas nada correu como o previsto. O juiz não aceitou casá-los e o trabalho que o rapaz arranjou na construção civil, bem, as coisas têm estado paradas por causa da economia. E, de repente, tudo o que parecia tão importante esfumou-se no ar. Um sonho que não se realiza passa a ser uma mentira? E eis-nos de novo a caminho do rio, ao som da harmónica de Bruce, quase de lágrimas nos olhos.
Leia ainda: Vivemos num mundo materialista, cantam elas
