lâmpada acesa

Em tempos, a Enron era uma das maiores empresas do mundo: mais de 20 mil funcionários e uma faturação superior a 100 mil milhões de dólares. Um autêntico gigante do setor de distribuição de energia, com ramificações pela eletricidade e pelo gás natural. A certa altura, a dimensão e o poder da companhia só poderiam querer significar uma coisa: a Enron devia estar a ser gerida pelos tipos mais espertos de todos. Aquele conselho de administração era, certamente, uma equipa de sonho, cheia de executivos visionários e infalíveis. Seria mesmo? Provavelmente, sim. Mas, se eram génios dos negócios, também teriam outras características menos recomendáveis. É que, um dia, a Enron afundou-se num lodaçal. E tudo ficou às escuras.

São apenas negócios, diziam eles

O documentário criado por Alex Gibney, Enron: The Smartest Guys in the Room (2005), serve em lume brando a história desta impressionante queda. Tudo se vai revelando num ritmo desapressado, como quando se faz um assado ou um guisado para apurar e intensificar os sabores. Lentamente, vamos sentindo os aromas a pairar no ar. Há um inconfundível toque de ganância naqueles executivos sem limites, capazes de colocarem em causa o bem-estar e a segurança de outros, de milhares de outros, só para amealharem mais umas centenas de milhares de dólares. Percebe-se também que aqueles empresários, na verdade, são tudo menos burros; de facto, não lhes falta visão de mercado. O pior é que não pareciam importar-se minimamente de colocarem essa inteligência ao serviço das ilegalidades e das manigâncias. Porquê? Talvez, simplesmente, por se acharem os mais espertos de todos. Por pensarem que nunca os conseguiriam apanhar a dar um passo em falso.

Realizado como se fosse um thriller, em que a malha vai apertando em redor dos culpados, o documentário acompanha a cronologia que culminou na falência da Enron, a qual teria consequências trágicas para milhares de trabalhadores, mas também para alguns homens do topo. E o adjetivo trágico, aqui, não é exagerado, pois ficaremos a conhecer até o caso de alguém que se suicidou com uma bala na cabeça. Mas, até chegarmos a esses negrumes finais, tudo surge como a ilustração de um conceito: “São apenas negócios”. E, se tudo aquilo não passa de negócios, logo, tudo é permitido.

The smartest guys in the room

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Uma questão de confiança no ser humano?

A história da Enron, claro está, aborda também aspetos mais latos da economia, ilustrando o confronto entre os partidos e governantes que entendem como necessária a intervenção do Estado (na legislação e no controle de certos setores) e os partidários de que deve ser o mercado a autorregular-se. A questão torna-se ainda mais relevante ao sermos expostos a certas medidas e pensamentos dos executivos da empresa, ou até dos corretores que vendiam energia aos estados norte-americanos. Perante princípios como a maximização do lucro, independentemente dos efeitos colaterais, será possível manter a confiança nas boas intenções do ser humano, de todos os seres humanos, quando vemos desfilar, à nossa frente, uma procissão de decisões questionáveis? Como é que num mundo do vale-tudo se pode confiar que os agentes envolvidos num determinado setor irão tomar sempre as decisões mais justas e acertadas, não apenas para um grupo restrito de acionistas ou de corretores, mas para a comunidade?

Talvez seja esse o principal incómodo de Enron: the Smartest Guys in the Room. Ficarmos com a certeza de que gente tão inteligente como Jeff Skilling, Andy Fastow ou Ken Lay pode, seja lá por que razão, colocar essa inteligência contra o bem-estar de muitos e em favor da riqueza de poucos. Naquelas personalidades vincadas, no fundo, joga-se também uma visão do mundo, sustentada numa ideia de inimputabilidade. A certa altura, um analista confronta Skilling, o CEO da empresa, com o facto de a Enron ser incapaz de apresentar um balancete ou uma demonstração de fluxo de caixa que incluísse as receitas. E o suposto tipo mais inteligente da sala, que lhe respondeu? «Você, você, você… Bem, uh, muito obrigado. Agradecemos a pergunta… idiota.»

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Uma verdade incómoda, servida sem acompanhamentos

As intervenções dos executivos, aliás, revelam-se um dos principais trunfos do documentário: na maior parte das vezes, não será preciso legenda sobre aquilo a que estamos a assistir. As imagens de arquivo daqueles homens poderosos falam por si. Até os áudios dos corretores da Enron falam por si. Por isso, os restantes testemunhos apresentados são apenas um complemento; não forçam nenhuma leitura, pois já estavam bem patentes as práticas defeituosas que levaram ao colapso da empresa. E será difícil que mesmo o espectador mais parcial, perante aquilo a que vai assistindo, não acabe por se interrogar sobre o que será, afinal, isso da ética no mundo dos negócios.

Um exemplo: num dado momento, a Enron decide deixar o estado da Califórnia às escuras, submetendo os respetivos habitantes a um apagão, por isso ser conveniente para os seus interesses financeiros. Nada que impeça o CEO, Jeffrey Skilling, de fazer uma piada em público: «Oh, não consigo conter-me. Sabem qual é a diferença entre o estado da Califórnia e o Titanic? É que quando o Titanic se afundou, pelo menos as luzes estavam acesas.»

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