Cultura e Lazer

A luta de classes servida num tabuleiro

Complexo e estimulante, Hegemony, uma das sensações de 2023 no reino dos jogos de mesa, é um portal para compreender a economia do antes e do agora.

Cultura e Lazer

A luta de classes servida num tabuleiro

Complexo e estimulante, Hegemony, uma das sensações de 2023 no reino dos jogos de mesa, é um portal para compreender a economia do antes e do agora.

O cenário inicial dificilmente podia ser mais desastroso: uma nação em completa desordem, a braços com uma sangrenta luta de classes. A classe operária depara-se com o desmantelamento do sistema social, os capitalistas veem desaparecer os lucros duramente conquistados, a classe média vai-se desvanecendo a conta-gotas, e o Estado afunda-se no buraco cada vez mais profundo do défice.

Bem, talvez “sangrenta” seja exagero, que neste jogo as diferentes fações não pegam em armas de fogo. Em Hegemony, as batalhas são estritamente ideológicas e, por inerência, económicas. Perante o caos instalado, os jogadores escolhem o seu lado. Querem ser os trabalhadores e lutar por reformas sociais? Ou querem aliar-se às grandes empresas e defender o mercado livre? E, nesse esforço por defender os interesses da sua classe, ajudarão também o Estado a manter o país unido, ou o bem-estar da nação será visto como uma questão de menor importância?

Eu quero isto, mas sei que tu queres aquilo

Só a primeira página do livro de regras de Hegemony já parece uma aula de economia. Eis como se definem os quatro papéis que os jogadores podem desempenhar:

Classe Capitalista (cor azul)

Gere empresas. Os trabalhadores ocupam postos nessas empresas. Os bens e serviços produzidos são vendidos pelos Capitalistas com vista à obtenção de lucro. O objetivo deste jogador é maximizar os seus rendimentos.

Classe Média (cor amarela)

A Classe Média tem trabalhadores que podem empregar-se em várias empresas e ganhar os seus salários, mas também tem a possibilidade de gerir as suas próprias pequenas e médias empresas. Este jogador tem de encontrar o equilíbrio perfeito entre produção, venda e consumo, de maneira a cobrir as necessidades dos seus trabalhadores e aumentar a respetiva prosperidade.

Classe Operária (cor vermelha)

A Classe Operária tem trabalhadores que laboram a troco de dinheiro, o qual é usado para cobrir as suas necessidades básicas: alimentação, saúde, educação e, se possível, entretenimento. O objetivo deste jogador é cobrir estas necessidades da melhor maneira possível, aumentando assim a prosperidade dos operários.

Estado (cor cinzenta)

 O Estado tenta aumentar a sua legitimidade, trabalhando arduamente para manter a satisfação geral e o equilíbrio entre todas as classes. Simultaneamente, terá de tentar lidar com as questões sociais que possam ir emergindo na nação.

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Jogar com todos, depois de ter aprendido bem um

Julgo que até já possa ter escolhido o seu lado com base naquilo em que acredita. Mas, dado que se trata de um jogo assimétrico (as ações e objetivos são diferentes para cada jogador), porque não experimentar os vários papéis de Hegemony, na tentativa de perceber melhor os pontos de vista de cada um e, dessa forma, entender o variado tecido humano com que se constrói um país?

Ainda assim, é certo que serão precisas algumas partidas a jogar com a mesma classe para se compreender na perfeição toda a potencialidade de cada papel. Apesar de só nos termos de preocupar com uma determinada cor, a tarefa, nos primeiros jogos, pode parecer incrivelmente complexa. A economia de um país, neste tabuleiro, também não é um assunto simplista. E ainda bem. É que, nesta matéria, provavelmente, nada será tão simples e claro quanto pensaríamos.

Hegemony

Um mundo de opções (e de dúvidas quase existenciais)

No universo de Hegemony, existem empresas públicas e privadas ligadas aos ramos da Agricultura, do Luxo, da Saúde, da Educação, dos Media. Há cartas de ação que permitem mexer com o sistema nacional de saúde, os impostos alfandegários, a política de imigração. Pode apostar-se no lóbi para sustentar ou contrariar alterações legislativas. Os operários têm o poder de organizar greves e manifestações. Os capitalistas podem ganhar belas maquias em negócios nos mercados de exportação. Pode recorrer-se à educação para formar trabalhadores especializados e criar sindicatos nos vários sectores. Há a possibilidade (ou obrigatoriedade) de aumentar ou descer salários conforme as oscilações no salário mínimo. É possível atribuir bónus aos trabalhadores, a fim de os fidelizar às empresas. Podem-se ajustar os preços das mercadorias e implementar turnos extra para aumentar a produção. Há acumulação de riqueza (e de pontos no jogo) para os capitalistas. Surgem acontecimentos nacionais e internacionais que obrigam o Estado a tomar medidas urgentes. Montam-se campanhas na comunicação social para aumentar a esfera de influência. Os trabalhadores podem organizar as suas Quintas Cooperativas. Há… há tanta coisa que se pode fazer!

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Cada voto conta para ganhar a hegemonia

O tabuleiro central também é, em si mesmo, uma miniaula de economia. Aí encontramos as áreas específicas para as empresas do setor público e do setor privado, um espacinho para o Tesouro do Estado, uma porta de entrada para os novos trabalhadores, e a crucial tabela de políticas em curso no país. Grande parte do jogo determina-se na área política, dividida em três secções: se o jogador puxar as políticas para a esquerda, aproxima-se da ideologia do Socialismo (e dos interesses da classe operária); se as puxar para a direita, aproxima-se da ideologia do Neoliberalismo (e dos interesses da classe capitalista). E há ainda as políticas que oscilam entre as tendências Nacionalista a Globalista.

Quando as políticas em curso – fiscal, mercado de trabalho, impostos, sistema de saúde, sistema de educação, taxas aduaneiras, imigração – não agradam aos objetivos de um jogador, propõe-se a mudança. Uns tentam aumentar o salário mínimo, outros tentam reduzir o peso do setor público; uns tentam baixar as taxas dos impostos; outros tentam a gratuitidade da saúde e da educação; uns tentam aumentar as tarifas aplicadas ao comércio externo, outros tentam fechar as fronteiras à imigração. Depois, as três classes decidem o teor do seu voto (contra ou a favor), e a sorte, juntamente com algum pensamento estratégico, define o resultado da votação. Medida aprovada ou chumbada?

Pedir empréstimos, com o fantasma do FMI à espreita

O jogo decorre ao longo de cinco rondas, sendo que cada ruma destas tem várias fases. Na curiosa e excitante fase da produção, pagam-se salários, produzem-se bens e serviços, entregam-se impostos ao Estado, compram-se bens essenciais para a subsistência. Quando uma classe não tem dinheiro suficiente para cumprir as suas obrigações (salários) ou necessidades (alimentação) pode sempre pedir um empréstimo. Irá pagá-lo com juros, claro está. E se for o Estado a ficar sem fundos? Recorre aos empréstimos, igualmente, mas atenção ao quadro mais geral; se a conjuntura assim o determinar, o FMI intervém. Ah, o FMI… Vale a pena transcrever um alerta do folheto de regras sobre este ponto específico: «A intervenção do FMI geralmente muda de forma significativa o decorrer do jogo e alguns jogadores podem ser duramente afetados.» Um bocado como na vida real, não? Por isso, aconselha-se fortemente ao Estado que informe os restantes jogadores quando houver indícios de que as finanças governamentais estão prestes a colapsar...

Exigente e extraordinariamente gratificante, Hegemony merece bem ter sido considerado um dos jogos do ano. Já com algumas expansões disponíveis (e bastantes vídeos no YouTube sobre explicações e estratégias para cada classe), é um daqueles casos raros em que o entretenimento se junta ao lado pedagógico. É que, mesmo que não escolhamos a classe capitalista, corremos o risco de acabar uma partida um bocadinho mais ricos em relação ao nosso conhecimento de como funcionam esses bichos monstruosos da economia e da política.

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A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.

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