Cultura e Lazer

Amigos, amigos, provérbios (e dinheiro) à parte

Embora exista um dia específico para homenagear a amizade, isto de ter amigos é de segunda a domingo. E de provérbios contraditórios, claro.

Que faríamos nós sem eles? Ah, esses seres imprescindíveis na nossa vida! Que preciosos são os provérbios! Quer dizer, os amigos, os amigos! Falamos dos amigos, obviamente. Aquele amigo especial, com quem possamos «ser unha com carne», estado que a Collecao de Provérbios, Adágios, Rifãos, Anexins, Sentenças Morais e Idiotismos da Lingoa Portugueza define como «intimidade e confidência entre duas ou mais pessoas».

É bom termos quem nos possa amparar, proteger, alguém que seja o nosso braço direito. «Quem bem me avisa, meu amigo é», recorda o Dicionário de Máximas, Adágios e Provérbios. Depois, tentemos retribuir na mesma medida, pois um amigo para a vida não se encontra em cada esquina e, segundo o rifoneiro, até podem ser mais preciosos do que a família: «Amigo fiel e prudente, vale muito mais que parente.» E onde estará esse fiel escudeiro? É questão de o procurarmos, pois «a sorte, faz parentes; a escolha, faz amigos».

O preço da amizade

Escolhidos os nossos amigos, o povo aconselha cuidados redobrados no que toca a questões de dinheiros. Está bem viva a máxima dos «amigos, amigos... negócios à parte», mas a relação duvidosa entre riqueza e amizade já aparece nas recolhas de Ramon Lull, em inícios do século XIV: «Não ganhes teu amigo com dinheiro nem o percas pela ira.» Ou, vendo a coisa pelo outro lado, «ama mais teu amigo pela prudência que pela riqueza». Quanto à lista de provérbios coligida pelo Major Hespanha, já em meados do século XX, também inclui um aviso semelhante: «A amizade é incerta quando a fortuna é próspera.»

Ainda se costuma dizer que «a amizade não tem preço», mas, quando o amigo tem dinheiro, os nossos antepassados apontam as baterias para a desconfiança. «Enquanto o ouro luz, os amigos são de truz», o que se pode traduzir pela ideia de que, enquanto alguém tiver dinheiro, não faltará gente solícita em seu redor. Caso para manter um pezinho atrás, pelo sim, pelo não, até ver em que param as coisas? Em época de abundância, os mais temerários até podem declarar que «em tempo de figos não há amigos». Será isso um exagero, um idiotismo ou um dos tais bons avisos?

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Nada de lambidelas nos amigos docinhos

Até parece que estamos a vislumbrar o amigo rico, qual figo madurinho, pronto a ser colhido da árvore… Pois bem, antes de o comerem em duas dentadas, atentem na máxima inscrita no livro do Major Hespanha: «Ainda que o teu amigo seja mel, não o lambas todo.»

A língua portuguesa tem muito que se lhe diga. Adiante, que no reino dos provérbios sobre amizade ainda temos mais um alerta a deixar: cuidado com os empréstimos, pois «amigo a pedir, inimigo a restituir». E, se o caldo se entornar, à custa de um mau pagador de dívidas, dificilmente a coisa se recomporá. «Amigo quebrado, soldará mas não sarará», diz-nos o livro dos Adágios Portugueses Reduzidos a Lugares Comuns, de 1651. Ao que acrescentamos mais três variantes sobre o mesmo tema:

«Amigo reconciliado, inimigo dobrado.»    

«Amizade renovada é como sopa requentada.»

«De amigo reconciliado e de caldo requentado, nunqua bom bocado.»

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Talvez não seja caso para tantos cuidados?

Com esta lista de perigos à vista, quase apetece não ter amigos… Mas não, nada disso, nem pensar, vasculhemos a nossa biblioteca à procura de mais razões para fazermos amizades! Pois, se antes ouvimos conselhos que nos recomendavam que não ajudássemos nem um amigo, o rifoneiro português também inclui outras sensibilidades. «Os amigos são para as ocasiões», sabemo-lo bem, até porque «amigo na necessidade é amigo de verdade».

Segundo o autor Francisco Roland e a sua coleção de anexins, datada de 1841, nem custa emprestar a quem precise: «Mais valem amigos na praça, que dinheiro na arca.» E, já uns séculos antes, Lull citava que «não sejas pobre de amigos e serás rico».

Apetecia terminar o texto aqui, neste cenário idílico da amizade, em que nem o dinheiro é um entrave. Acontece, porém, que ainda não citámos um dos provérbios mais polémicos sobre a questão que aqui nos trouxe: «O melhor amigo é o dinheiro.» Se é ou não, bem, isso fica ao critério de cada um. Mas que se apressaram a fazer e difundir cartões digitais com a frase, apresentando-a como citação de Camilo Castelo Branco (assim, “assinada” por um autor ilustre, até soa mais imponente), talvez seja indicativo de que há muita gente a querer ter uma relação íntima com… as notas e moedas. Nós, obviamente, somos totalmente pelos amigos. (Por falar nisso, deixa-me lá verificar o saldo da conta, a ver se aquele tipo já me pagou o que devia…)

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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.

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