Gostos não se discutem, quem aqui escreve acha que Succession está entre as três melhores séries que já viu. Talvez seja mesmo a melhor, dado que não existe um episódio fraco, ou sequer menos bom.
Mas, porque gostos não se discutem, realce-se que Succession (2018-2023), segundo a listagem do imdb.com, recebeu um total de 307 nomeações e venceu 177 prémios, incluindo alguns Globos de Ouro e acumulando, ano após ano, Emmys para Melhor Série Dramática e Melhor Argumento. E quer os atores masculinos, quer a atriz Sarah Snook, obtiveram alternadamente galardões para o melhor desempenho, numa curiosa mimetização da luta entre a família protagonista: os Roy.
Afinal, os pais têm filhos preferidos ou não?
Logan Roy (Brian Cox) é o fundador e dono da Waystar RoyCo, um conglomerado na área do entretenimento (cruzeiros e parques de diversões) e dos meios de comunicação tradicionais (televisão e imprensa). De origem escocesa, com uma infância traumática de que se vão descobrindo ínfimos detalhes (às vezes de forma quase subliminar), o dono do império procura encontrar um sucessor à sua altura.
A escolha ideal deveria recair sobre um dos seus quatro filhos, fruto de dois casamentos. Connor, Kendall e Roman, os três rapazes, e Shiv, a única filha, viveram sempre sob a sombra e o domínio do pai, num misto de devoção e ódio filial. Qual deles será o eleito? Sobre qual deles recairá, no final, a bênção paternal? Ou será que o patriarca dos Roy jamais confiará em algum deles para continuar o seu legado?
Além de drama familiar, Succession apresenta-se como um drama no mundo financeiro, onde se fazem jogadas de alto risco. As movimentações estratégicas, que passam por aquisições hostis ou fusões problemáticas, têm correspondência na carnificina ao nível individual, com as manobras ocultas dos acionistas sedentos de lucro, as disputas entre membros da direção, as tentativas de lixar os colegas de trabalho.
A família disfuncional dos Roy, e da implacável companhia que ostenta o seu apelido, representa também uma sátira de uma certa América empresarial. Como nas peças de Shakespeare, observamos a luta pelo poder, as alianças frágeis, as traições abjetas, as intrigas palacianas (há vários episódios que, inclusive, se passam em palácios ou mansões). Os filhos tentam de tudo para obter a atenção do patriarca reinante. Querem ser os preferidos, mas Logan é, antes de pai, um empresário de sucesso que, mesmo envelhecido e adoentado, se mostra incapaz de largar o comando do seu reino. E, porque subiu a pulso, porque se tornou milionário do nada, porque ganhou influência até sobre presidentes norte-americanos, nenhum capricho lhe soa disparatado, nenhum objetivo se vislumbra inatingível.
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A atração fatal pelo poder

O grande trunfo do argumento é que aqui não existem os bons e os maus. Ao longo das quatro temporadas, o espectador sente-se atraído ou revoltado com o pai e, alternadamente, com cada um dos filhos (e dos cônjuges e namoradas e mães e madrastas, enfim, com todas as personagens que entram e saem de cena). Esta alternância na identificação emocional mantém uma tensão constante.
Logan Roy é praticamente o único não dissimulado; um dos poucos que assume aquilo que é, que não hesita em derrubar ou humilhar seja quem for. “Fuck them”, podia ser o seu lema… Já os filhos, na corrida para se tornarem o filho preferido, desesperam por encontrar a fórmula certa. Devem ser implacáveis como o pai ou, pelo contrário, mostrarem-se um poço de virtudes, detentores de bons valores morais?… Este ziguezague emocional, esta terra sem pouso seguro, acaba por ir revelando que talvez todos tenham um fundo comum, na incapacidade de pensar nos outros, mesmo que sejam seus irmãos, para colocarem em primeiro lugar o sucesso da empresa ou da sua própria carreira.
A sede de poder, no fundo, tanto pode ser vista como o reflexo da forma como os Roy foram criados, como o espelho de um país que gosta de ser o número um do mundo, seja em termos de poderio económico ou militar. Para empresários como Logan Roy o importante é o lucro. E a vitória sobre os outros.
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Escuta bem: Tudo é um mercado
Num dos episódios, Logan senta-se num restaurante banal para comer com o seu guarda-costas e motorista Colin. É um momento de rara intimidade e o manda-chuva da Waystar diz ao seu funcionário que o considera um bom homem. Um amigo até. O seu melhor amigo. Depois, questiona-se.
Logan: Pensando bem, o que são as pessoas?
Colin: Pois.
Logan: O que são as pessoas?
Colin: Refere-se a...
Logan: São unidades económicas. Eu sou colossal; as outras pessoas são pigmeus. Mas, juntas, formam um mercado.
Colin: OK, certo.
Logan: O que é uma pessoa? Tem valores e objetivos, mas funciona num mercado. Mercado do casamento, mercado de trabalho, mercado do dinheiro, mercado de ideias, etc.
Colin: Então, é tudo um mercado?
Apetece vestir a pele de Colin e repetir: então, é tudo um mercado?
Shakespeare, claro, mas o resto… sem comentários
O ator Brian Cox disse que o papel de Logan Roy lhe trouxera, pela primeira vez na carreira, a experiência de ser reconhecido na rua pelo rosto e nome da personagem. Embora o autor e argumentista da série sempre o tenha negado, acredita-se que o magnata e a sua família, bem como o canal de notícias ATN, são inspirados na figura e no universo de Rupert Murdoch, dono da Fox News. Mesmo sem confirmação oficial, os paralelismos são evidentes. Já quanto à influência da peça Rei Lear, de Shakespeare, essa ficou às claras; o próprio Brian Cox interpretou o papel do monarca, ao longo das décadas de 1980 e 1990, em digressões da Royal Shakespeare Company e do Royal National Theatre.
Sob a cúpula de slogans como “agarra o que é teu”, “cada família tem as suas tradições” ou “faz a tua jogada”, Succession revela-se uma viagem incomparável. Mas talvez não seja a série ideal para ver toda de seguida. É que há muitos, muitíssimos, episódios duros, exigentes. É que certas famílias, e certas empresas, não são ambiente para brincadeiras.
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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.
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