Sejamos francos. A contabilidade, geralmente, é encarada como uma coisa muito… chata. Um trabalho sem piada nenhuma, feito por pessoas apagadas, sem qualquer chama. Não é, portanto, de admirar que, em 2011, o argumento que propunha um contabilista como protagonista de um filme de ação acabasse na lista negra dos filmes com menos probabilidades de serem feitos. Mas os anos passaram e, de repente, não existe um, mas dois filmes do senhor contabilista que, por acaso, também é bom a despachar tipos maus.
Os acertos de contas do menino autista
Senhor contabilista? Pois. A palavra continua com uma conotação tão pouco fixe que a tradução do título para português resolveu manter o original The Accountant, acrescentando-lhe um apropriado “Acerto de Contas”. A escolha de Ben Affleck para o papel, essa, revelou-se apropriada. A fácies fechada e sorumbática do ator casa bem com um homem que, além de saber de contas e de armas, tem síndrome de Asperger.
O guião do primeiro filme, estreado em 2016, dá espaço e tempo suficiente à infância e juventude de Christian Wolff. «O seu filho é diferente», avisa um neurologista, a certa altura. «Mais cedo ou mais tarde, o ser diferente acaba por assustar as pessoas», responde o pai, militar de carreira. Para esse pai, ajudar os filhos a sobreviverem na selva que é a escola (e o resto da vida) será prepará-los o melhor que sabe, com um treino físico e mental digno das forças especiais. E sim, Christian é diferente. Tem dificuldade em muitas aspetos da vida que não colocam problemas às pessoas neuro-típicas; mas supera-as nos seus domínios. Chega a ser um génio com os números, vendo conexões que mais ninguém nota.

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Os “cromos” que compreendem a matemática
Christian foi um miúdo que aprendeu desde cedo a lidar com a sua forma de autismo. Em adulto, continua a ter os seus mantras, as suas estratégias para manter-se funcional. Além de ótimo contabilista, tornou-se um extraordinário assassino. O que vem a calhar, pois parte do seu trabalho inclui a lavagem de dinheiro para gente do mundo do crime. E se um dia algum narcotraficante passa a querer-lhe mal? E se alguém não gostar que ele veja mais nos livros de contabilidade do que deveria ver? Mais vale saber defender-se.
Das cenas de ação podemos esperar o habitual: socos, pontapés, cambalhotas, tiros de rajada ou de espingarda de precisão, muitas mortes em série. Mas, para quem quer um pouco mais do que isso, as cenas em que Christian está apenas vestido com o fato de contabilista são, inesperadamente, muito excitantes. A matemática, diga-se, tem esse potencial de fascínio, porque para muitas pessoas é uma área difícil de compreender, quase misteriosa; por isso, quando encontramos alguém que domina equações e tal, gera-se uma sensação quase imediata de admiração. E, acoplada a essa sensação, vem muitas vezes o rótulo de que aquela pessoa tão boa com os números, também é um “cromo”.
E se um filme de ação nos levar até à Lei de Benford?
Agora, se Christian é um cromo, então é um cromo com muita pinta. É vê-lo a deparar-se com um sistema de contabilidade complexo – com planos de depreciação, funcionários do quadro e subcontratados, contas confidenciais… Uma dor de cabeça? Nada disso. Um desafio estimulante. A cena em que Christian decifra (com recurso a marcadores pretos e laranjas, mais umas paredes de vidro) os segredos financeiros de uma empresa de robótica acaba por ter mais intensidade do que as cenas de ação.
E leva-nos, com um pouco de pesquisa, até à Lei de Benford, que pode ser utilizada na deteção de fraude nas demonstrações financeiras. Esta teoria, e citando a definição da Wikipédia, observa que, em muitos conjuntos de dados numéricos da vida real, o dígito que surge mais vezes tende a ser pequeno; assim, num conjunto que obedeça a esta lei, o algarismo 1 será mesmo o mais significativo, sendo o 9 o que menos vezes aparece. Segundo parece, podemos notar esta tendência em coisas tão diversas como contas de eletricidade, moradas de rua, preços de casas ou de ações ou taxas de mortalidade. Vai daí, encontrar uma discrepância enorme à Lei de Benford num documento contabilístico pode ser indício de que tenha sido falsificado.
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Uma sequela que só serve para somar tiros
«Eu gosto de encontrar coisas que não são óbvias», diz a rapariga contabilista com quem Christian é posto a trabalhar, para justificar a escolha de carreira. E era precisamente isso que se estava à espera de encontrar numa sequela: algo menos óbvio, com menos tiroteios e mais daquela capacidade incrível de desmontar discrepâncias financeiras e de encontrar o lado errado dos números. Ou até, simplesmente, de mostrar a um casal a passar por dificuldades financeiras como é que pode aliviar a corda ao pescoço, através de algumas deduções aos impostos. Ah, a senhora faz colares de missangas em casa e vende-os às amigas? Então, a sua sala de jantar passa a ser o seu escritório.
Quem não quereria um Christian destes na sua vida? O contabilista, calma, não o assassino, que, mesmo que seja por uma boa causa, dispara contra tudo o que lhe aparece pela frente (e por trás, pelos lados, etc.). Em The Accountant – Acerto de Contas 2 (2025), não há grande coisa a aprender; a única contabilidade passível de se efetuar é mesmo a do número de fatalidades.

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