Cultura e Lazer

Capitalismo: Uma visão americana e democrata

O sistema capitalista é definido e imutável, ou pode mudar consoante as perspetivas? Eis um documentário e uma série que nos mostram o prisma democrata da coisa.

Robert Reich, autor e anfitrião de Saving Capitalism (2017), foi secretário de Estado do Trabalho no governo de Bill Clinton. Neste documentário, a câmara segue o professor universitário ao longo de várias apresentações do seu livro, num períplo que o leva até ao dito «coração da América conservadora». Cenário ideal para o confronto de ideias sobre o sistema económico dominante: o capitalismo.

O subtítulo do filme já alude à divisão do país em dois, mas talvez a grande divisão, mais do que política, seja a que agora separa os ricos dos pobres. Para ilustrar o seu diagnóstico, Reich ausculta a voz de agricultores, empresários, advogados ligados a lóbis, congressistas, estudantes, empregados de mesa, gente a passar por dificuldades e gente sem grandes aflições na vida. Pelo meio, uma pergunta balança-lhe sempre na mente: o sistema está a funcionar para muitos ou para poucos? O sistema está a resultar para a maioria das pessoas ou está a resultar só para um número reduzido de pessoas?

O sistema não é intrinsecamente moral ou imoral

A resposta parece estar num novo questionamento: se a economia cresce e os salários da classe média e classe baixa se mantêm iguais ou até descem, então para onde está a ir o dinheiro? Robert defende que o dinheiro está a fluir para o topo; para os executivos e acionistas das grandes companhias. Face a isto, será que a solução passa por abolir o sistema em vigor? Não. Robert quer consertá-lo, e a sua receita particular pretende juntar a ética ao capitalismo.

Para o ex-secretário do Trabalho, o capitalismo, em si mesmo, não é moral ou imoral. É um sistema que depende, sobretudo, da forma como é posto em prática. E, para o professor, torna-se muito claro que o sistema também necessita de regras, impostas e reguladas pelos governos. Algo que costuma chocar com a longa crença americana na propriedade privada e no mercado livre.

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A importância de apelar ao ativismo cívico

É interessante esta opção de Robert Reich: em vez de diabolizar um sistema, ele procura passar a mensagem de que o capitalismo acaba por ser um reflexo dos valores das pessoas, da sociedade, dos políticos, dos empresários. Porém, as pessoas parecem cada vez mais divorciadas da política e, por consequência, de conseguirem influenciar as decisões dos governos. Um vazio que parece interessar a alguns intervenientes. Embora tente encontrar pontes entre os dois lados da barricada, Reich assume que as grandes empresas e os partidos entraram num certo compadrio – os donativos, os lóbis, os incentivos ou isenções fiscais –, capaz de criar um círculo vicioso de políticas que criam riqueza e de riqueza que influencia a política.

Tudo isto terá gerado também um conflito de gerações: a maioria dos mais novos parece ter de resignar-se à aspiração de trabalhar muito para ganhar um ordenado mínimo (o qual mal dará para pagar as contas mensais). Já se podia ter invertido caminho? «À distância, quando tive a oportunidade de estar no Governo, gostava de… Gostava de ter ido mais longe», confessa o antigo secretário do Trabalho. «Mas, na altura, achei que estava a ir o mais longe que podia.» Oportunidade perdida para sempre? Para Reich, a resposta e a solução estão nas novas gerações. É preciso chamar as pessoas; mobilizá-las para o ativismo cívico com vista à mudança.

Radiografar o atual mundo do trabalho

Chamar as pessoas, ou tentar ver as pessoas, pode ser uma das premissas da minissérie Working: What We do All Day (2023). Com narração (e aparições) do antigo presidente norte-americano Barack Obama, os quatro episódios mostram partes das atividades profissionais, e da vida pessoal, de trabalhadores nas indústrias tecnológica, hoteleira e dos serviços.

Os quatro episódios funcionam como uma escala em termos de rendimentos: começa-se na base da pirâmide, com a indústria dos serviços ditos de “baixa especialização”. Estafetas de entregas, por exemplo, e outras áreas onde existe oferta de emprego, mas a troco de salários baixos que mal dão para pagar contas, quanto mais para pagar dívidas antigas, ter seguro de saúde ou poupar para a reforma. Neste estrato, a maior parte das pessoas encara a sua situação como transitória. Estão à espera da oportunidade para poderem concretizar os seus sonhos, as suas vocações.

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O culto a Gordon Gekko e aos novos valores da classe média

Realista e dura, a série mostra como o mercado de trabalho se foi alterando ao longo da História. Fala-se do New Deal elaborado pelo presidente Roosevelt, que trouxe alguns direitos aos trabalhadores, e das novas representações da classe média, em plenos 1980, lideradas pelo ganancioso Gordon Gekko. De repente, na Wall Street dos engravatados, o importante era enriquecer, vencer a todo o custo, arrasando quem estivesse pelo caminho. Quem era a classe média nas séries de televisão e nos filmes dessa altura? Advogados, médicos, amigos com grandes apartamentos.

Mas em Working, a mudança dos tempos também surge em exemplos simplificados. Eis um: antes, as empresas tinham os seus próprios porteiros, que, por estarem inseridos numa estrutura, acabavam por ter hipótese de ascender dentro da companhia; agora, os porteiros são pessoas subcontratadas, praticamente invisíveis, sem espaço para poderem evoluir. Representará isso o fim do sonho americano?

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A estranha divisão da riqueza em percentagens

Neste novo mundo do trabalho, o segundo episódio acompanha pessoas com cargos mais altos na hierarquia. São os que deviam constituir a classe média, uma fatia entre os ricos e os pobres, mas cuja realidade já não é bem essa. Obama mostra a ironia de que, atualmente, é possível comprar mais aparelhos, mais roupas, mais objetos de consumo do que no passado, mas, ao invés, as casas, as propinas universitárias e as faturas das creches subiram desmesuradamente. Há filhos com cargos de supervisão que tiveram de voltar para casa dos pais, por não conseguirem pagar o seu próprio sítio. Os salários não cresceram na proporção direta do tamanho do ecrã de televisão.

É nesses ecrãs planos e grandes que podemos acompanhar os protagonistas do terceiro episódio, os ditos profissionais do conhecimento: diretor geral de hotel, engenheiro sénior de robótica, lobista no congresso… Altura certa para o narrador nos dizer que, atualmente, existem níveis de desigualdade sem igual aos do passado. O 1% do topo detém uma riqueza total semelhante à dos 90% do fundo. Entre eles? Os 9% restantes não são uma classe média: juntos, têm mais riqueza do que o 1% do topo ou os 90% de baixo. Em resumo: são ricos e fazem vida de ricos.

E que vida fazem os multimilionários? Que preocupações podem eles ter? É isso a que se procura responder no último episódio, indo ao encontro de patrões, fundadores de empresas, presidentes de grupos multinacionais. Gente que ganha milhões ou dezenas de milhões e que suscitam uma pergunta: como se chegou a estes valores astronómicos?

Um exemplo português a contrariar a tese da utopia

Tudo começou, defende Obama, com as ideias de Milton Friedman. Para o economista, as empresas só teriam um objetivo: maximizar o lucro. Ao diretor executivo determinava-se o dever de entregar o maior lucro possível aos acionistas. Apenas isso. E, por desempenharem bem essa tarefa, deviam ser muito bem recompensados.

As conversas de Obama com as pessoas do topo tentam, no entanto, mostrar uma ideia semelhante à defendida por Robert Reich: o sistema não está inquinado de origem. São os CEO que detêm o poder de impor a cultura, os objetivos, os princípios por que a empresa se quer reger. E, de facto, existem dirigentes que aspiram a mais do que o mero lucro. Querem sentir-se úteis, ser um esteio importante na sua comunidade. Como tal, acreditam que a contribuição de todos os funcionários deve ser respeitada e devidamente remunerada. Utopias de ex-presidentes?

Talvez Portugal tenha conhecido um exemplo demonstrativo desta “utopia”. Na morte de Rui Nabeiro, ecoou o elogio unânime ao dinâmico homem de negócios que não se esquecera de desempenhar um papel relevante na comunidade. E, durante dias, falou-se muito do seu sentido de justiça e da sua profunda humanidade. Seria esse o documentário que gostaríamos de ver a seguir. Até lá, na esperança de que o produzam, iremos falando de outras coisas que já se podem ver nos nossos grandes e modernos ecrãs.

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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.

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