Cultura e Lazer

Bernie Madoff: Uma tragédia digna de Shakespeare

Costuma dizer-se que a realidade suplanta sempre a ficção. Assim, se o cinema nos deu Gordon Gekko, o vilão de Wall Street, a vida real deu-nos Bernie Madoff.

A nova série da Netflix, “Madoff – O Monstro de Wall Street”, recupera a história do maior burlão financeiro da história norte-americana. Na altura em que o seu esquema de pirâmide foi descoberto, Bernie Madoff já arrecadara um total de 64 mil milhões de dólares. Do dinheiro recebido ao longo de 20 anos, não investira um único cêntimo: as transações que apareciam nos extratos dos clientes eram todas falsas.

Em quatro episódios, a série procura esclarecer os bastidores da megaoperação assente num esquema de Ponzi (o nome do imigrante italiano nos Estados Unidos que inventou o sistema, em 1919, a fim de enriquecer ilicitamente). O princípio nem é complicado. Primeiro, atraem-se os investidores iniciais com a promessa de lucros chorudos. Depois, angariam-se novos investidores, cujo dinheiro se utiliza para pagar os lucros devidos aos primeiros investidores. E assim sucessivamente, alargando-se cada vez mais a base da pirâmide.

Negócio de fachada

A série assinada por Joe Berlinger sofre, talvez, de um excesso de encenação – Bernie é quase sempre visto a circular pelo escritório, em câmara lenta, a dar baforadas no charuto –, mas esse artifício serve, igualmente, para ilustrar como o negócio de Madoff assentava sobretudo numa gigantesca fachada. No episódio final, a desmontagem do cenário e a descaracterização do ator funcionam como uma analogia perfeita: tudo consistira num logro. Uma enorme mentira que, apesar dos testemunhos das vítimas, dos jornalistas, dos analistas, deixa no ar mais perguntas do que respostas.

Afinal, como é que alguém consegue enganar os organismos reguladores durante tanto tempo? Como é que alguém consegue sacudir todas as suspeitas de fraude sem ser alvo de uma investigação profunda? Como é que alguém, somente à custa de ser bem-falante e de ostentar uma imagem de sucesso, consegue convencer tanta gente a acreditar em si?

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Parecer aquilo que não se é

A Internet tem outras fontes onde podemos procurar as respostas. No Youtube encontramos, por exemplo, o depoimento de Harry Markopoulos (o analista que durante anos denunciou a fraude de Madoff sem que ninguém o levasse a sério) perante a subcomissão para o mercado de capitais. Também podemos ver as entrevistas a Ruth e Andrew Madoff, incluídas no programa “60 Minutos”, que ilustram a erosão da própria família, destruída pela incredulidade, pela vergonha, pela implacável perseguição mediática. O jornalista, embora respeitador da dor alheia, não se coíbe de fazer as perguntas difíceis: como foi possível que nenhum deles se apercebesse do que se passava?

Se a história de Madoff resulta num alerta sobre as fragilidades internas do sistema financeiro, também serve de mostruário de algumas características marcantes dos seres humanos. Há certamente quem continue sem acreditar que a mulher e os dois filhos de Bernie pudessem estar às escuras em relação ao esquema fraudulento. Mas Ruth, que conhecera Bernie aos 13 anos e se casara com ele aos 18, procura explicar que era tudo uma questão de confiança. Como desconfiar de uma figura quase lendária em Wall Street? Como duvidar de um negócio que, no fundo, representava toda uma reputação? Bernie era idolatrado nos mercados financeiros. Os filhos achavam que ele era um génio. As entidades nomeavam-no para presidente de Bolsas e comissões disto e daquilo.

De Niro: O feiticeiro das mentiras

É inegável que, consciente ou inconsciente, a família desfrutou de uma vida sumptuosa. Os Madoff tinham uma penthouse em Nova Iorque, moradias em Palm Beach e no sul de França, dois iates... Talvez a riqueza servisse para evitar perguntas incómodas, mas Bernie também é descrito, por várias pessoas, como um chefe de família incontestado e um homem capaz de dar murros na mesa intimidatórios. Michelle Pfeiffer, a atriz que desempenhou o papel de Ruth Madoff em “O Feiticeiro das Mentiras” (Wizard of Lies, 2017), não teve dúvidas em afirmar que a mulher e os filhos do “monstro” também tinham sido vítimas de uma mentira.

Na verdade, se não fosse a crise de 2008, é provável que Bernie Madoff nunca tivesse sido apanhado. No telefilme da HBO, Robert De Niro encarna a personagem do burlão. A semelhança física entre os dois é arrepiante e, na cena em que Bernie conta aos filhos que uma parte do negócio de família não passa de uma ilusão, o rosto do ator mantém-se inexpressivo.

Bernie Madoff: A consultora é uma fraude. Não há investimentos.

Mark Madoff: Que estás a dizer? É claro que há investimentos.

Bernie Madoff: Eu inventei-os.

Mark Madoff: E todos os nossos extratos?

Bernie Madoff: Inventei-os.

Andrew Madoff: Eu vi as transações.

Bernie Madoff: São falsas. Todas falsas. No fundo, é apenas um enorme esquema de Ponzi.

Ruth Madoff: O que é um esquema de Ponzi?

Bernie Madoff: Recebi dinheiro de algumas pessoas, dei-o a outras e eu nunca… agora já não resta nada. Era suposto existirem 50 mil milhões [de dólares], mas não há nada, foi-se tudo.

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Criminoso sem sinais de arrependimento

Bernie Madoff foi denunciado às autoridades pelos próprios filhos. Perante o juiz, declarou-se culpado das acusações de fraude e acabaria sentenciado a uns extraordinários e simbólicos 150 anos de prisão. A série da Netflix inclui alguns trechos das entrevistas que Bernie concedeu já dentro da prisão. Nas imagens, sem o seu distinto fato e gravata e enfiado num uniforme prisional, surge-nos um homem derrotado, mas aparentemente tranquilo e desassociado de emoções. Algum arrependimento?

Numa entrevista à jornalista Barbara Walters (disponível no YouTube), Bernie responderia não ter quaisquer saudades do passado. “Vivi os últimos 20 anos num estado de medo”, confessava. Ninguém o obrigara a nada, esclarecia, mas o próprio esquema de Ponzi tornara-se uma espécie de sentença; a partir de certa altura, só lhe restara uma fuga para a frente. “Nunca tive intenção de fazer algo maldoso. As coisas, simplesmente, descontrolaram-se... Não creio que eu seja um vilão ou que seja um estúpido”, disse o homem que destruiu as poupanças de milhares de famílias.

Casal unido (quase) até à morte

Antes de ser condenado, Bernie Madoff conheceu ainda um breve período de liberdade, quando saiu sob fiança e se pôde novamente juntar à mulher que não o conseguira abandonar, mesmo que pressionada pelos filhos para que o fizesse. À noite, Ruth e Bernie tentaram suicidar-se. Tomaram comprimidos para dormir e, de mãos dadas, ficaram a ver na televisão o filme “Não Há como a Nossa Casa” (Meet Me in St. Louis, 1944), no qual Judy Garland canta a imortal canção "Have Yourself a Merry Little Christmas", até fecharem os olhos.

– Tivemos uma boa vida, não tivemos? – perguntou Bernie.

– Hum. Sim – respondeu Ruth. – Até tu teres dado cabo dela.

Acordaram no dia seguinte, pois o pesadelo das suas vidas ainda não tinha terminado.

Madoff: Um apelido maldito

A história dos Madoff é uma tragédia familiar que podia ter sido escrita por Shakespeare. Tem todos os ingredientes: poder, dinheiro, engano, traição, ganância, ascensão e queda, prisão, morte. Um apelido que fica manchado para sempre. Em 2010, precisamente no dia em que se cumpriam dois anos sobre a captura de Bernie, Mark, o filho mais novo dos Madoff, enforcava-se em casa. O acontecimento afastaria Ruth do marido, reaproximando-a do filho que lhe restava. Um ano depois, o cancro de Andrew que entrara em remissão reaparecia; apesar dos tratamentos, o último filho dos Madoff acabaria por morrer em 2014.

O mentor do maior esquema de pirâmide da história financeira morreria na cadeia, em abril de 2021, de causas naturais. Tinha 82 anos. Entre a bruma de fumo de charuto no escritório de Madoff, vem-nos novamente à memória a figura do transfigurado Robert De Niro. “Deixem-me fazer-vos uma pergunta: acham que eu sou um sociopata?” E aquilo que nós ouvimos talvez seja outra coisa: sociopata ou não, como é que é possível que tanta gente caia nas armadilhas armadas pelos Bernie Madoff desta vida?

Talvez tenha de ser assim. Se todos desconfiássemos uns dos outros, a vida em família, a vida em sociedade, seria perfeitamente insustentável. E, afinal, como nos relembra o slogan de promoção a “O Feiticeiro das Mentiras”, “só aqueles em quem confiamos é que verdadeiramente nos podem trair”.

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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.

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