A herança digital é tudo o que fica online quando alguém morre: contas de e-mail e redes sociais, fotografias e ficheiros em nuvem, subscrições, domínios e até carteiras digitais. Em Portugal, o tema tem ganhado relevância, mas ainda existem zonas cinzentas no enquadramento legal. Por isso, a melhor forma de evitar problemas é definir instruções em vida e usar as ferramentas que as plataformas disponibilizam.
Se nada ficar preparado, os familiares podem ter de recorrer a formulários e validações adicionais para encerrar contas ou pedir acesso a dados, e nem sempre isso é possível. Planear tudo previamente impede que se percam memórias e evita burocracia numa fase difícil.
O que é a herança digital?
A herança digital refere-se a todos os bens, contas e dados pessoais existentes no mundo online que permanecem após a morte de alguém. Estes podem ser de natureza variada:
- E-mail, calendário e mensagens: Gmail, Outlook, WhatsApp.
- Redes sociais: Facebook, Instagram, LinkedIn, X, TikTok.
- Armazenamento em nuvem: Google Drive, iCloud, OneDrive, Dropbox.
- Streaming e subscrições: Netflix, HBO Max, Prime Video, Disney+, Spotify, jornais e revistas.
- Serviços com valor financeiro: PayPal, MB Way, banca online, corretoras.
- Criptomoedas e ativos digitais: bitcoin, ethereum, NFT.
- Conteúdos criados online: blogues, canais de YouTube, sites pessoais, direitos de autor de obras publicadas online.
- Autenticação e recuperação: números de telefone, apps de 2 fatores, e-mails de recuperação.
Quem tem acesso à herança digital?
Aqui começam as dúvidas. Ao contrário do que se verifica com os bens materiais, a legislação sobre a herança digital ainda não é clara ou uniforme em muitos países, incluindo Portugal.
Apesar de, segundo o Código Civil, a sucessão abranger todos os bens e direitos transmissíveis do falecido, não existe uma norma específica sobre bens digitais. A regra geral indica que integram a herança os bens com valor patrimonial, exceto se forem direitos estritamente pessoais, que se extinguem com a morte.
Isto significa que ativos digitais com valor económico – como criptomoedas, saltos em contas online ou créditos em plataformas – entram na herança. Já conteúdos de natureza pessoal – como mensagens privadas ou e-mails – levantam dúvidas, porque podem ser considerados direitos pessoais.
Quem pode aceder à herança digital?
Os herdeiros legitimários (cônjuge, filhos, pais) têm direito à herança física e digital, no caso dos bens digitais patrimoniais. No caso dos dados pessoais, os herdeiros podem pedir acesso ou eliminação, a não ser que o falecido tenha deixado indicação contrária.
Na prática, o acesso depende muito de três fatores:
- Leis em vigor: Em Portugal, aplica-se o princípio geral da herança, mas muitas plataformas têm regras próprias que podem limitar o acesso dos herdeiros.
- Termos de serviço das plataformas: Cada rede social ou serviço digital define como os dados devem ser tratados após a morte.
- Indicações deixadas em vida: Se a pessoa definiu instruções (por exemplo, através do testamento ou das opções de legado do Facebook), o processo torna-se mais claro.
Leia ainda: Sou herdeiro. E agora, o que tenho de fazer?
Porque é importante a herança digital?
Ignorar a herança digital pode trazer vários problemas:
- Perda de memórias: Fotografias e vídeos guardados na nuvem podem desaparecer para sempre.
- Complicações legais: Os herdeiros podem não conseguir aceder a contas bancárias digitais ou ativos valiosos.
- Questões de privacidade: Conteúdos sensíveis podem ficar acessíveis sem controlo.
- Custos escondidos: Podem continuar a ser cobradas subscrições automáticas, mesmo sem uso.
Como preparar a herança digital em vida (passo a passo)
Preparar a herança digital não tem de ser complicado. Pense nisto como organizar uma pasta com instruções claras e dois ou três “interruptores” que ficam prontos para serem acionados quando necessário.
1. Faça um inventário das contas e serviços
Comece por listar as contas que usa no dia a dia. Foque-se no que tem valor emocional (fotografias, mensagens) e/ou valor prático (faturas, documentos, acessos a serviços).
Todos estes bens, contas e dados associados à sua identidade online podem ser considerados a sua herança digital.
Dica prática: o Doutor Finanças tem um modelo de checklist “Preparar tudo antes da morte” que já inclui uma secção de acessos digitais. Use‑o como base e vá completando.
2. Decida o que acontece a cada conta
Defina a sua preferência para cada plataforma: partilhar dados com alguém de confiança, transformar em conta de homenagem ou apagar definitivamente. Escreva quem pode tratar de quê e onde deve pedir esse acesso. Estas decisões reduzem pedidos posteriores e respeitam a privacidade.
Quando não existir decisão prévia, os familiares podem pedir ações às plataformas, mas tudo é analisado caso a caso e com limites.
3. Ative as ferramentas nativas das plataformas
Estas opções são rápidas de ativar e fazem toda a diferença.
Google — Gestor de Contas Inativas
O que é
Permite escolher um período de inatividade. Se a conta ficar inativa, a Google pode notificar contactos de confiança, partilhar os dados que forem selecionados com cada contacto ou eliminar a conta.
Como ativar
- Aceder ao Gestor de Contas Inativas e iniciar configuração.
- Definir o tempo de inatividade (por exemplo, 6 ou 12 meses).
- Indicar contactos (até 10) e que dados cada um pode receber. É possível optar pela eliminação total após a partilha.
- Registar no seu documento de acessos que o Gestor foi ativado, quem são os contactos e que dados receberão.
O que não faz
A Google não fornece palavras‑passe. Caso não exista um plano ativo, os familiares podem pedir o encerramento da conta ou, em situações limitadas, dados específicos, sujeitos a análise e prova.
Apple — Contacto de Legado
O que é
Permite nomear um contacto de legado que pode pedir acesso a parte dos seus dados Apple após a sua morte, apresentando a chave de acesso e a certidão de óbito. O acesso é limitado no tempo.
Como ativar (iPhone/iPad)
- Aceder a Definições → [o seu nome] → Início de sessão e segurança → Contacto de legado.
- Selecionar a pessoa e partilhar a chave de acesso.
- Guardar a chave no seu dossiê de acessos e confirmar por e-mail.
O que não faz
Palavras‑passe, informações de pagamento, compras integradas (assinaturas e conteúdos adquiridos em apps) e conteúdos multimédia licenciados (música, filmes, livros) não são partilhados. O contacto de legado tem acesso aos dados por um período de 3 anos a partir do momento em que o primeiro pedido de conta de legado é aprovado. Após esse período, a conta é permanentemente apagada.
Facebook — Perfil memorial ou eliminação
O que é
É possível escolher manter a conta como memorial, com a expressão “Em memória de” apresentada junto ao nome no perfil da pessoa e a designação de um contacto legado que realiza ações limitadas. Em alternativa, pode-se pedir a eliminação definitiva da conta após a morte.
Como preparar agora
Em Definições → Centro de Contas → Dados pessoais → Controlo e propriedade da conta → Conversão em conta memorial, adicionar o contacto legado.
Em alternativa, selecionar eliminação da conta após o falecimento.
Se nada estiver configurado
Os familiares podem pedir a conversão em conta memorial ou a remoção através do formulário oficial.
Instagram — Conversão da conta em memorial
No Instagram, não existe contacto legado, como no Facebook. Ainda assim, os familiares podem pedir a conversão da conta em memorial com prova de falecimento via formulário oficial. Também é possível solicitar a remoção da conta.
4. Guarde acessos e instruções com segurança
Evite listas de palavras‑passe em papel ou e-mail. Prefira um gestor de passwords com acesso de emergência e documente, no seu dossiê, onde está a informação e quem tem autorização para agir.
5. Informe as pessoas de confiança
Indique, de forma discreta, onde está o dossiê (físico ou digital), quem é o executor digital e o que deve ser feito em primeiro lugar. Não precisa de revelar palavras‑passe; basta informar o procedimento e os locais das instruções. Também pode incluir instruções sobre a herança digital num testamento tradicional.
6. Atualize regularmente
Marque uma data no calendário para rever a lista e as opções. Atualize quando houver mudanças relevantes, como troca de número de telemóvel, novas contas ou alteração de preferências.
7. Preparar um “plano B”
Mesmo com tudo preparado, é útil indicar, no dossiê, os links oficiais para pedidos após a morte. Isso poupa tempo à família.
E se não deixar instruções?
Se nada for definido, o cenário pode ser mais complicado. Os familiares terão de contactar cada plataforma, apresentar documentos oficiais (como a certidão de óbito) e, mesmo assim, podem ver o acesso negado por razões legais ou técnicas. No caso das criptomoedas, por exemplo, a perda pode ser irreversível.
Com o tema da herança digital a ganhar cada vez mais relevância, é provável que, nos próximos anos, ocorram mudanças na legislação portuguesa para dar respostas mais claras. Até lá, o melhor que tem a fazer é tomar medidas preventivas para proteger os seus dados e o seu legado digital, facilitando a vida aos seus familiares.
