Mulher utiliza portátil para aceder às contas de um familiar recentemente falecido

A herança digital é tudo o que fica online quando alguém morre: contas de e-mail e redes sociais, fotografias e ficheiros em nuvem, subscrições, domínios e até carteiras digitais. Em Portugal, o tema tem ganhado relevância, mas ainda existem zonas cinzentas no enquadramento legal. Por isso, a melhor forma de evitar problemas é definir instruções em vida e usar as ferramentas que as plataformas disponibilizam.  

Se nada ficar preparado, os familiares podem ter de recorrer a formulários e validações adicionais para encerrar contas ou pedir acesso a dados, e nem sempre isso é possível. Planear tudo previamente impede que se percam memórias e evita burocracia numa fase difícil.  

O que é a herança digital? 

A herança digital refere-se a todos os bens, contas e dados pessoais existentes no mundo online que permanecem após a morte de alguém. Estes podem ser de natureza variada: 

  • E-mail, calendário e mensagens: Gmail, Outlook, WhatsApp. 
  • Armazenamento em nuvem: Google Drive, iCloud, OneDrive, Dropbox. 
  • Streaming e subscrições: Netflix, HBO Max, Prime Video, Disney+, Spotify, jornais e revistas. 
  • Serviços com valor financeiro: PayPal, MB Way, banca online, corretoras. 
  • Criptomoedas e ativos digitais: bitcoin, ethereum, NFT. 
  • Conteúdos criados online: blogues, canais de YouTube, sites pessoais, direitos de autor de obras publicadas online
  • Autenticação e recuperação: números de telefone, apps de 2 fatores, e-mails de recuperação. 

Quem tem acesso à herança digital? 

Aqui começam as dúvidas. Ao contrário do que se verifica com os bens materiais, a legislação sobre a herança digital ainda não é clara ou uniforme em muitos países, incluindo Portugal. 

Apesar de, segundo o Código Civil, a sucessão abranger todos os bens e direitos transmissíveis do falecido, não existe uma norma específica sobre bens digitais. A regra geral indica que integram a herança os bens com valor patrimonial, exceto se forem direitos estritamente pessoais, que se extinguem com a morte. 

Isto significa que ativos digitais com valor económico – como criptomoedas, saltos em contas online ou créditos em plataformas – entram na herança. Já conteúdos de natureza pessoal – como mensagens privadas ou e-mails – levantam dúvidas, porque podem ser considerados direitos pessoais.  

Quem pode aceder à herança digital? 

Os herdeiros legitimários (cônjuge, filhos, pais) têm direito à herança física e digital, no caso dos bens digitais patrimoniais. No caso dos dados pessoais, os herdeiros podem pedir acesso ou eliminação, a não ser que o falecido tenha deixado indicação contrária.  

Na prática, o acesso depende muito de três fatores: 

  • Leis em vigor: Em Portugal, aplica-se o princípio geral da herança, mas muitas plataformas têm regras próprias que podem limitar o acesso dos herdeiros. 
  • Termos de serviço das plataformas: Cada rede social ou serviço digital define como os dados devem ser tratados após a morte. 
  • Indicações deixadas em vida: Se a pessoa definiu instruções (por exemplo, através do testamento ou das opções de legado do Facebook), o processo torna-se mais claro. 

Leia ainda: Sou herdeiro. E agora, o que tenho de fazer? 

Porque é importante a herança digital? 

Ignorar a herança digital pode trazer vários problemas: 

  • Perda de memórias: Fotografias e vídeos guardados na nuvem podem desaparecer para sempre. 
  • Complicações legais: Os herdeiros podem não conseguir aceder a contas bancárias digitais ou ativos valiosos. 
  • Questões de privacidade: Conteúdos sensíveis podem ficar acessíveis sem controlo. 
  • Custos escondidos: Podem continuar a ser cobradas subscrições automáticas, mesmo sem uso. 

Como preparar a herança digital em vida (passo a passo) 

Preparar a herança digital não tem de ser complicado. Pense nisto como organizar uma pasta com instruções claras e dois ou três “interruptores” que ficam prontos para serem acionados quando necessário. 

1. Faça um inventário das contas e serviços 

Comece por listar as contas que usa no dia a dia. Foque-se no que tem valor emocional (fotografias, mensagens) e/ou valor prático (faturas, documentos, acessos a serviços). 

Todos estes bens, contas e dados associados à sua identidade online podem ser considerados a sua herança digital. 

Dica prática: o Doutor Finanças tem um modelo de checklist “Preparar tudo antes da morte” que já inclui uma secção de acessos digitais. Use‑o como base e vá completando.  

2. Decida o que acontece a cada conta 

Defina a sua preferência para cada plataforma: partilhar dados com alguém de confiança, transformar em conta de homenagem ou apagar definitivamente. Escreva quem pode tratar de quê e onde deve pedir esse acesso. Estas decisões reduzem pedidos posteriores e respeitam a privacidade. 

Quando não existir decisão prévia, os familiares podem pedir ações às plataformas, mas tudo é analisado caso a caso e com limites.  

3. Ative as ferramentas nativas das plataformas 

Estas opções são rápidas de ativar e fazem toda a diferença. 

Google — Gestor de Contas Inativas 

O que é

Permite escolher um período de inatividade. Se a conta ficar inativa, a Google pode notificar contactos de confiança, partilhar os dados que forem selecionados com cada contacto ou eliminar a conta.  

Como ativar 
  1. Aceder ao Gestor de Contas Inativas e iniciar configuração. 
  1. Definir o tempo de inatividade (por exemplo, 6 ou 12 meses). 
  1. Indicar contactos (até 10) e que dados cada um pode receber. É possível optar pela eliminação total após a partilha.  
  1. Registar no seu documento de acessos que o Gestor foi ativado, quem são os contactos e que dados receberão. 
O que não faz 

A Google não fornece palavras‑passe. Caso não exista um plano ativo, os familiares podem pedir o encerramento da conta ou, em situações limitadas, dados específicos, sujeitos a análise e prova.  

Apple — Contacto de Legado 

O que é 

Permite nomear um contacto de legado que pode pedir acesso a parte dos seus dados Apple após a sua morte, apresentando a chave de acesso e a certidão de óbito. O acesso é limitado no tempo.  

Como ativar (iPhone/iPad) 
  1. Aceder a Definições → [o seu nome] → Início de sessão e segurança → Contacto de legado. 
  1. Selecionar a pessoa e partilhar a chave de acesso. 
  1. Guardar a chave no seu dossiê de acessos e confirmar por e-mail.  
O que não faz

Palavras‑passe, informações de pagamento, compras integradas (assinaturas e conteúdos adquiridos em apps) e conteúdos multimédia licenciados (música, filmes, livros) não são partilhados. O contacto de legado tem acesso aos dados por um período de 3 anos a partir do momento em que o primeiro pedido de conta de legado é aprovado. Após esse período, a conta é permanentemente apagada. 

Facebook — Perfil memorial ou eliminação 

O que é 

É possível escolher manter a conta como memorial, com a expressão “Em memória de” apresentada junto ao nome no perfil da pessoa e a designação de um contacto legado que realiza ações limitadas. Em alternativa, pode-se pedir a eliminação definitiva da conta após a morte.  

Como preparar agora 

Em Definições → Centro de Contas → Dados pessoais → Controlo e propriedade da conta → Conversão em conta memorial, adicionar o contacto legado

Em alternativa, selecionar eliminação da conta após o falecimento.  

Se nada estiver configurado 

Os familiares podem pedir a conversão em conta memorial ou a remoção através do formulário oficial.  

Instagram — Conversão da conta em memorial 

No Instagram, não existe contacto legado, como no Facebook. Ainda assim, os familiares podem pedir a conversão da conta em memorial com prova de falecimento via formulário oficial. Também é possível solicitar a remoção da conta. 

4. Guarde acessos e instruções com segurança 

Evite listas de palavras‑passe em papel ou e-mail. Prefira um gestor de passwords com acesso de emergência e documente, no seu dossiê, onde está a informação e quem tem autorização para agir.  

5. Informe as pessoas de confiança 

Indique, de forma discreta, onde está o dossiê (físico ou digital), quem é o executor digital e o que deve ser feito em primeiro lugar. Não precisa de revelar palavras‑passe; basta informar o procedimento e os locais das instruções. Também pode incluir instruções sobre a herança digital num testamento tradicional. 

6. Atualize regularmente 

Marque uma data no calendário para rever a lista e as opções. Atualize quando houver mudanças relevantes, como troca de número de telemóvel, novas contas ou alteração de preferências. 

7. Preparar um “plano B” 

Mesmo com tudo preparado, é útil indicar, no dossiê, os links oficiais para pedidos após a morte. Isso poupa tempo à família. 

E se não deixar instruções? 

Se nada for definido, o cenário pode ser mais complicado. Os familiares terão de contactar cada plataforma, apresentar documentos oficiais (como a certidão de óbito) e, mesmo assim, podem ver o acesso negado por razões legais ou técnicas. No caso das criptomoedas, por exemplo, a perda pode ser irreversível. 

Com o tema da herança digital a ganhar cada vez mais relevância, é provável que, nos próximos anos, ocorram mudanças na legislação portuguesa para dar respostas mais claras. Até lá, o melhor que tem a fazer é tomar medidas preventivas para proteger os seus dados e o seu legado digital, facilitando a vida aos seus familiares

A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.

Carreira e RendimentosTelecomunicaçõesVida e família