Para a maioria das pessoas, dívidas são sinónimo de dificuldades. E a verdade é que o sobreendividamento é um problema grave em Portugal. Segundo o estudo “Bem-Estar Financeiro em Portugal: Uma Perspetiva Comportamental”, desenvolvido pelo Doutor Finanças, em parceria com a Laicos – Behavioural Change, e publicado em 2024, 1 em cada 4 inquiridos dizia ter dificuldades em pagar as suas contas e cumprir as suas obrigações financeiras, enquanto 67% diziam ter demasiadas dívidas. Mas a verdade é que existem dívidas boas e o recurso ao financiamento pode ser uma decisão muito acertada, em algumas circunstâncias.
Algumas dívidas ajudam a avançar e a criar valor. Outras atrasam objetivos, causam preocupação e limitam a liberdade financeira. Neste artigo, vamos ver o que separa as dívidas boas e as dívidas más, com recurso a alguns exemplos práticos.
Critérios que distinguem as dívidas boas das dívidas más
Quando estiver perante um crédito e quiser perceber se ele está enquadrado com os seus objetivos, aplique-lhe os seguintes filtros. Caso não cumpra estes critérios, é muito provável que esteja perante uma dívida má.
Criação de valor
Uma dívida tende a ser boa quando financia algo que valoriza ao longo do tempo ou gera rendimento. Exemplos típicos de uma dívida com potencial para criar valor são uma casa para habitação própria com prestação sustentável, uma formação que aumenta a empregabilidade e o salário ou um equipamento que faz crescer a produtividade de um pequeno negócio.
No polo oposto está o crédito utilizado para comprar gadgets, férias ou outros bens que desvalorizam rapidamente. Aqui, estamos perante financiamento de consumo e não investimento.
Este primeiro filtro é qualitativo, mas evita muitos erros. Pergunte sempre: “Isto cria valor palpável e duradouro?”
Horizonte temporal
O prazo do crédito deve ser coerente com a “vida útil” do que está a financiar. Em princípio, financiar um telemóvel a 48 meses é má ideia – a não ser que seja uma ferramenta de trabalho indispensável que não possa pagar a pronto. Já financiar uma casa a 30 anos pode ser bastante racional – mesmo sabendo que vai pagar um valor muito significativo em juros – desde que o custo total e os riscos estejam controlados.
Sustentabilidade no orçamento
Por muito boas que sejam as condições de um crédito, o financiamento pode ser má ideia se não couber no seu orçamento. A principal forma de perceber se tem capacidade para pagar o empréstimo é através da taxa de esforço, ou seja, a percentagem do seu rendimento líquido que vai para o pagamento de todas as prestações de crédito. Não é aconselhável que seja superior a 30% – e quanto mais baixa for, melhor, porque convém manter margem para imprevistos e para poupança regular.
Condições do crédito
Mesmo que um empréstimo se destine à criação de valor, só será verdadeiramente uma dívida boa se o crédito tiver condições favoráveis em relação ao que é praticado no mercado. É aqui que entram três conceitos indispensáveis para avaliar qualquer crédito:
- Taxa Anual de Encargos Efetiva Global (TAEG): É a taxa que agrega juros, comissões, impostos e seguros associados ao crédito. É o indicador certo para comparar propostos porque capta quase todos os custos numa única percentagem anual.
- Montante Total Imputado ao Consumidor (MTIC): É o valor, em euros, que pagará do início ao fim do contrato. Dois créditos com TAEG próximas podem ter MTIC muito diferentes se o prazo mudar. Por isso, TAEG e MTIC devem ser lidos em conjunto.
- Ficha de Informação Normalizada Europeia (FINE): É neste documento que todos estes elementos vêm explicitados de forma padronizada, para poder comparar facilmente as diferentes propostas. Consulte sempre com atenção a FINE (no caso do crédito habitação) ou a FIN (nos outros tipos de crédito).

Exemplos de dívida má
Cartão de crédito com pagamento mínimo
Se paga apenas o mínimo todos os meses, os juros do cartão de crédito acumulam. Por regra, esta é das formas mais caras de financiamento do consumo. Por isso, se usar cartão, pague sempre a 100% a fatura de cada ciclo para não entrar em rotação de saldo.
Crédito para consumo depreciativo
Pedir um crédito para comprar um equipamento eletrónico, pagar férias ou renovar a decoração da casa é, regra geral, má dívida. Os bens perdem valor depressa, a utilidade é passageira e o custo total pode ser elevado quando somamos comissões e juros.
Refinanciamentos sucessivos que não melhoram o custo
Trocar um crédito caro por outro ainda mais caro ou esticar prazos indefinidamente para “respirar” agora e pagar muito mais ao longo dos anos são armadilhas frequentes. Se a troca não baixa a TAEG de forma relevante, mantendo o MTIC controlado, provavelmente não compensa.
Prestações “sem juros” com custos escondidos
Apesar de anunciar prestações com “0% de juros”, a modalidade “compre agora, pague depois”, disponibilizada em muitas lojas físicas ou online, pode incluir comissões ou outras despesas. Um dos perigos são as penalizações em caso de atraso no pagamento, que podem ser elevadas e contabilizadas diariamente. Nestes casos, o valor pago em taxas pode, em última análise, ultrapassar até o preço do próprio bem. O melhor é estudar bem todas as condições destes pagamentos em prestações ou simplesmente evitá-los.
Exemplos de dívida boa
Nos casos anteriores, as dívidas eram formas de perder dinheiro em juros e outras despesas, atrasando ou impossibilitando a realização de objetivos financeiros. Mas não tem de ser sempre assim. Vejamos agora alguns exemplos em que o recurso ao crédito pode ser uma decisão bastante racional e um contributo para a valorização das suas finanças.
Crédito habitação para casa própria
A habitação é uma necessidade básica à qual a maior parte das pessoas só consegue aceder de duas formas: através do arrendamento ou com recurso ao crédito habitação. A não ser que tenha recebido uma casa por herança (ou por outra via) ou que disponha dos meios para comprar uma casa a pronto, podemos considerar que o crédito habitação é uma dívida boa se estiverem reunidas três condições:
- O valor do empréstimo faz sentido financeiro a médio prazo, em comparação com uma renda;
- A prestação é sustentável para o seu nível de rendimentos e despesas;
- O seu crédito habitação é competitivo perante outras propostas, nomeadamente em termos de TAEG e MTIC.
Caso prático
Imagine que quer arrendar um T2 numa zona central de Lisboa. Após uma pesquisa, confronta-se com a decisão entre arrendar uma casa por 1.400 euros por mês ou comprar uma habitação semelhante por 300.000 euros, com este enquadramento:
- Entrada: 30.000 euros (10%)
- Financiamento: 270.000 euros
- TAEG: cerca de 4,8% com taxa mista
- Prazo: 30 anos
- Prestação inicial: cerca de 1.420 euros por mês (com seguros incluídos)
- MTIC: superior a 500.000 euros
Ao olhar para o valor de renda ou de prestação, verificamos que são muito parecidos. Mas há diferenças muito importantes. Ao comprar casa, está a construir património próprio, que pode valorizar ao longo do tempo. Já se optar pelo arrendamento, estará a pagar mensalmente sem qualquer retorno financeiro, mas não terá de suportar uma série de despesas associadas à propriedade (encargos com o crédito, registos, impostos, condomínio).
Claro que a preferência pessoal e a adequação ao estilo de vida são fundamentais nesta decisão: prefere a estabilidade de uma casa própria, com autonomia para fazer as obras que quiser e sem a possibilidade de cessação de um contrato, ou a liberdade de poder trocar de casa muito rapidamente e sem preocupações com a manutenção do imóvel?
Seja como for, se olharmos para as duas opções do ponto de vista estritamente financeiro, a aquisição da habitação pode ser considerada uma dívida boa, desde que:
- Haja capacidade financeira para os custos iniciais (entrada, encargos com o crédito, registos);
- A taxa de esforço do agregado se mantenha saudável (idealmente abaixo dos 30%);
- Exista um fundo de emergência para lidar com imprevistos e eventuais subidas da Euribor;
- A compra estiver enquadrada com o plano de vida da família (estabilidade, horizonte de permanência no imóvel).
Crédito habitação para investimento
O crédito habitação também pode ser utilizado para investir em imóveis para arrendar. Neste caso, quando pode ser considerado dívida boa?
- Quando a renda líquida prevista cobre confortavelmente a prestação, seguros e despesas, e ainda deixa margem para manutenção, desocupação do imóvel e impostos.
- Quando o rendimento anual do imóvel é competitivo face ao risco e a outras alternativas de aplicação.
- Quando a TAEG e o MTIC podem ser acomodados e são compatíveis com os objetivos do investidor.
Caso prático
Suponhamos que quer investir num T2 no Porto para arrendar e tem património considerável para pagar um valor considerável de entrada. Após analisar o mercado, encontra um imóvel por 230.000 euros e confronta-se com esta decisão:
- Entrada: 115.000 euros (50%)
- Financiamento: 115.000 euros
- TAEG: cerca de 4,2%
- Prazo: 30 anos
- Prestação: cerca de 600 euros por mês
- Renda de mercado: 1.260 euros por mês
Mesmo considerando custos fixos (condomínio, IMI, seguros, manutenção) e um mês sem inquilino por ano, o arrendamento cobre a prestação e ainda sobra uma margem mensal positiva antes de impostos. Além disso, todos os meses está a amortizar parte do capital e a construir património, que pode valorizar ao longo do tempo.
Claro que há riscos: variações na Euribor (se a taxa for variável), períodos de desocupação superiores ao previsto, obras inesperadas e a tributação sobre rendas. No entanto, com uma entrada robusta e uma boa escolha de localização, este tipo de operação pode ser considerada uma dívida boa, porque:
- Gera rendimento que cobre o crédito e custos correntes;
- Permite acumular património e potencial valorização do imóvel;
- Mantém a taxa de esforço controlada, já que a prestação é baixa face à renda.

Crédito para pagar educação e qualificação
Financiar formação que aumente a probabilidade de emprego e a progressão salarial pode ser um exemplo de dívida boa, desde que as condições do crédito sejam competitivas e as perspetivas de retorno sejam realistas.
Aqui, além das taxas de financiamento, importa também o tempo de retorno, ou seja, em quanto tempo a melhoria de rendimento “paga” a dívida.
Caso prático
A Marta é analista de dados e quer evoluir na carreira. Descobre um mestrado em Ciência de Dados, com um custo total de 6.000 euros.
Não tem esse valor disponível, mas consegue um crédito pessoal com uma taxa de juro competitiva e prestações mensais que consegue suportar com o seu orçamento atual. Ao longo de três anos, paga o crédito ao mesmo tempo que continua a trabalhar e aplica os conhecimentos que vai adquirindo.
Dois anos após terminar o mestrado, já foi promovida, teve um aumento salarial e está prestes a recuperar o investimento inicial.
Num caso como este, em que o montante do crédito foi recuperado relativamente rápido, pode-se considerar que esta dívida foi boa, por ter sido um meio para atingir um objetivo que valorizou o seu perfil profissional e aumentou a sua estabilidade financeira.
Claro que, quanto maior for a TAEG e mais saturado estiver o setor profissional em causa, mais arriscada será a opção pelo empréstimo como forma de progredir profissionalmente.
Investimento no negócio
Se for um trabalhador independente ou tiver um negócio, financiar equipamento que aumente a produtividade pode ser racional. As duas condições essenciais são que o cash‑flow adicional cubra a prestação com margem e o que o MTIC seja aceitável face ao ganho total.
Caso prático
O João é fotógrafo freelancer especializado em eventos. Tem recebido pedidos para vídeo, mas o equipamento atual não responde a essa necessidade. Decide então investir 6.000 euros em material. Pede um crédito pessoal, que corresponde a um MTIC de cerca de 6.850 euros e uma prestação mensal de 190 euros.
Com o novo equipamento, passa a faturar, em média, mais 600 euros líquidos por mês. Ou seja, ganha uma margem de 410 euros por mês, já descontada a prestação. Isto quer dizer que, em 17 meses, já recuperou todo o custo do crédito (juros incluídos). A partir daí, tudo o que ganhar com o equipamento é lucro adicional.
Porque é que esta pode ser considerada uma dívida boa?
- Cria valor: permite oferecer serviços mais completos e captar novos clientes.
- Tem custo controlado: é uma prestação baixa em comparação com a receita adicional.
- É sustentável: encaixa no orçamento do João e tem retorno rápido.
- É flexível: o equipamento pode ser vendido, se necessário, recuperando parte do valor investido.
Consolidação de créditos
Em rigor, o crédito consolidado não cumpre necessariamente todas as características para ser considerado dívida boa. Mas é, pelo menos, dívida melhor do que a existia anteriormente, dado que, na maioria dos casos, resulta em prestações mais suaves e melhores taxas. Em termos simples, trata-se de juntar vários créditos já existentes num só, com uma única prestação mensal.
Caso prático
Imaginemos que tem um total de dívida por pagar de 85.000 euros, entre créditos pessoais, cartão de crédito e crédito automóvel. Mensalmente, paga um total de 1.350 euros. Ao fazer um crédito consolidado com hipoteca sobre imóvel próprio, consegue uma TAEG bem mais baixa e uma prestação de 585 euros. Esta proposta permitiria reduzir muito significativamente a prestação e seria um caso muito claro de dívida melhor do que aquela que tinha.
Como sair das dívidas más
As dívidas, por si só, não são boas nem más. São boas quando o ajudam a avançar, criando valor, mantendo um custo total controlado e cabendo com folga no seu orçamento. Tornam-se más quando o puxam para trás, financiando consumo que se desvaloriza ou tendo taxas elevadas que fazem disparar a sua taxa de esforço.
Se, ao aplicar os critérios anteriores, concluiu que tem dívidas más ou “cinzentas”, tem à sua frente um caminho que, não sendo mágico, é claro. No artigo “Como sair das dívidas em 6 passos”, vai encontrar um plano detalhado para reequilibrar as suas contas.
