O Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, alterou o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), regulando mecanismos que permitem a reclassificação de terrenos rústicos em urbanos, mediante um processo administrativo impulsionado pelos municípios.
O atual Executivo defende que este diploma vem responder à crise da habitação, aumentando os terrenos disponíveis para construção, sem, contudo, comprometer a proteção ambiental e agrícola, assegurando que a decisão sobre a reclassificação dos solos continuará a ser dos Municípios, por forma a que se garanta um processo transparente e controlado, mas será bem assim?
Além da oportunidade e momento da iniciativa do Governo, levantaram-se inúmeras vozes colocando em causa: (i) as reais intenções do diploma e a potencialização de corrupção em ano de eleições autárquicas e (ii) o risco que da referida iniciativa legislativa poderia encerrar no que se refere à proteção do ordenamento do território; (iii) aos riscos ambientais e ao nível da biodiversidade e, por fim até (iv) ao prejuízo que os efeitos desse diploma poderiam trazer para a agricultura.
Apesar do entendimento unanime em considerar que a escassez de oferta de habitação será, porventura, um dos mais sérios problemas que o país enfrenta atualmente, não há uma solução mágica ou, sequer, um entendimento maioritário sobre a forma de conseguir encontrar uma solução eficiente para esse problema.
Dependente do quadrante político e da forma como se perspetiva o papel do Estado, existem entendimentos diferentes e por vezes até contraditórios sobre as melhores soluções a implementar que conduzam a um crescimento da oferta e, consequentemente, à redução do preço da habitação que, de forma também unânime, é de conhecimento geral estar num nível incomportável para a maioria dos portugueses, sobretudo, quando ponderamos o valor do rendimento médio nacional.
Tendo como ponto assente que a questão da habitação é algo a que o Estado deve dar resposta, há que partir para a análise dos mecanismos que, com a presente lei dos solos, se visa adotar.
É uma verdade indesmentível que o preço da habitação está em níveis nunca antes vistos. Num destes dias dei por mim a visitar um apartamento para habitação, tipologia T4, num condomínio de luxo, num dos concelhos limítrofes ao de Lisboa. O seu preço de venda era de 2.600.000 euros e a promotora dizia-me com indisfarçável satisfação que não faria qualquer tipo de desconto até porque, ainda a 6 meses da conclusão da construção, tinha mais de 80% das mais de 80 frações vendidas, sem ter feito qualquer desconto. É evidente que, sendo de um empreendimento de luxo, não se destina ao trabalhador com o vencimento médio, mas, ainda assim, o preço em causa seria incomportável para mais de 95% dos portugueses, seguramente.
Tal como não há uma solução única para resolver o problema, também não parece existir uma causa única para termos chegado a este ponto. Na verdade, o problema nem sequer é exclusivamente português, ainda que se sinta de uma forma muito mais impactante no nosso país. Contribuiu em muito o facto de a construção nova ter estagnado nas últimas décadas e também, não há como negar, pelo facto de, por diferentes motivos, se ter registado um crescimento anormal na procura, motivado em parte pela imigração crescente, não acompanhado na parte da oferta.
Nesta circunstância é lamentável que entidades privadas e públicas (sejam da administração central ou local, com algumas honrosas exceções) não tenham aproveitado de uma forma mais significativa os recursos e ajudas de instrumentos de promoção e financiamento como o Portugal 2030 ou o próprio PRR. Como em quase tudo no país, vamos arrastando com a barriga até que chega ao momento em que já não temos tempo para aproveitar os mecanismos de ajuda que foram projetados para nós… como se deles não precisássemos.
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Voltemos, então, à tão discutida Lei dos Solos. Do que se trata?
Trata-se de uma lei que vem estabelecer mecanismos para a conversão de terrenos rústicos em terrenos urbanos. No dizer do ministro da Coesão, Dr. Castro Almeida, no limite, para resolver os problemas de habitação, no máximo teríamos de utilizar menos de 1% da área existente de terrenos rústicos.
O Decreto-Lei 117/2024 pretende ser um ponto de viragem no que se refere à oferta de habitação, mas também ao ordenamento e aproveitamento dos terrenos disponíveis para construção em áreas urbanas, pretendendo-se a reclassificação de solos que até aqui, e apesar de reunirem requisitos próprios para o seu desenvolvimento urbano, estão classificados como rústicos e, nessa medida, impossibilitados de serem destinados à construção.
Considerando o objetivo da lei, é fácil perceber que com a sua entrada em vigor, e mesmo tendo presente as alterações já aprovadas na especialidade, além de abrir novos horizontes para todo o setor imobiliário, de promoção e construção, gera expetativas de uma valorização muito expressiva em terrenos rústicos que, até à data, pouco valor comercial teriam.
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O processo de reclassificação
Em termos gerais, após alterações introduzidas pela Lei dos Solos, podem os municípios (e não os particulares) determinar o impulso do processo de reclassificação para solo urbano, mediante alteração simplificada do plano diretor municipal, sempre que a finalidade seja habitacional ou conexa à finalidade habitacional e usos complementares e desde que, cumulativamente:
- Seja assegurada a consolidação e a coerência da urbanização a desenvolver com a área urbana existente;
- Pelo menos 700/1000 da área total de construção acima do solo se destine a habitação pública, a habitação destinada a “arrendamento acessível” ou “a custos controlados”;
- Seja delimitada e desenvolvida uma unidade de execução;
- Existam ou sejam garantidas as infraestruturas gerais e locais, assim como os equipamentos de utilização coletiva necessários e os espaços verdes adequados para cobrir as necessidades decorrentes dos novos usos, e, por fim,
- Seja compatível com a estratégia local de habitação, carta municipal de habitação ou bolsa de habitação.
Pelo contrário, a reclassificação para solo urbano não poderá abranger:
- Áreas integradas no Sistema Nacional de Áreas Classificadas;
- Zonas de perigosidade de estabelecimentos abrangidos pelo regime de prevenção de acidentes graves, bem como as que sejam identificadas, sendo objeto de decisão pela respetiva câmara municipal, ainda que não incorporadas no plano diretor municipal;
- Áreas abrangidas por programas especiais da orla costeira, albufeiras de águas públicas e estuários;
- Áreas de risco potencial significativo de inundações previstas nos Planos de Gestão dos Riscos de Inundações, por fim,
- Aproveitamentos hidroagrícolas.
É importante ter presente que apesar do impulso pertencer ao município, concluído o processo, o mesmo tem de ser aprovado não já pelo executivo camarário que o propôs, mas pela Assembleia Municipal.
Compete às Câmaras Municipais determinar as áreas elegíveis para a reconversão e estabelecer os critérios específicos para aquele fim (infraestruturas, equipamentos de utilização coletiva, espaços verdes, etc.). Não incumbirá, em qualquer caso, aos particulares dar o impulso ou requerer a conversão dos seus terrenos rústicos em urbanos. Podem aqueles, no entanto, manifestar aquele seu interesse e participar no processo de consulta pública quando o mesmo for apresentado.
Assim, as Câmaras Municipais que optem por fazê-lo devem apresentar uma proposta de reclassificação, acompanhada da fundamentação sumária da reclassificação e das peças escritas e desenhadas que incluam a delimitação da área abrangida, a área total de construção, o número máximo de fogos e a programação temporal das obras de urbanização e edificação.
A proposta é colocada em consulta publica por um prazo mínimo de 20 dias, após a qual a Câmara Municipal, a comissão executiva metropolitana, o conselho intermunicipal ou as câmaras municipais associadas para o efeito, procedem às alterações que entenderem necessárias e submetem a proposta a aprovação da assembleia municipal, do conselho metropolitano, da assembleia intermunicipal ou das assembleias municipais dos municípios associados para o efeito.
A Assembleia Municipal ganhará aqui um pendor e responsabilidade de fiscalização que se mostra imprescindível tais são os riscos de deturpação da finalidade e objetivo de cada processo de alteração do PDM para este efeito.
A ideia que subjaz às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro no Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) é um princípio básico da lei da oferta e da procura: havendo a conversão de terrenos rústicos em terrenos urbanos (e, consequentemente, edificáveis), haverá um aumento da oferta desses terrenos com uma quase automática e esperada redução no preço dos mesmos, fruto desse aumento de oferta.
Até aqui, parece mais ou menos lógico. Verificando-se uma redução no preço dos terrenos para construção, aumentará a construção e a oferta de imóveis habitacionais no mercado acompanhada quase certamente por uma tendência de redução dos preços médios da habitação.
A partir daqui começam as dúvidas, com pessoas conhecedoras e respeitáveis a levantar dúvidas sobre
(i) a oportunidade temporal do diploma, tendo em conta que se aproximam eleições autárquicas e o diploma atribuí às autarquias o poder de aprovar a reclassificação dos terrenos;
(ii) os perigos que uma conversão “desregulada” podem trazer para a agricultura, para o ambiente e biodiversidade;
(iii) para o potencial crescimento de especulação;
(iv) para a criação de mecanismos potenciadores de corrupção e de favorecimento.
Compete, por um lado, a quem se propõe recorrer a este mecanismo legal agir no estrito cumprimento da lei e de forma desinteressada e objetiva e, por outro, ao Estado, estabelecer mecanismos de controlo e fiscalização efetivos que limitem, condicionem e impeçam a utilização deste regime para benefícios particulares.
Não me parece em qualquer caso que este regime, com as recentes alterações aprovadas, justifique o clima de “Caça às Bruxas” que se instalou na bolha política e da comunicação social, acima de tudo revela-se a preocupação por corrigir aquilo que também tem sido amplamente criticado nos últimos anos em matéria de habitação.
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Miguel Ramos Ascensão, Of Counsel na Antas da Cunha ECIJA & Associados SP RL., com mais de 20 anos de experiência na área Imobiliária onde foi reconhecido, em 2015, pela WWL como um dos advogados de referência em Portugal no direito Imobiliário e na assessoria em transações imobiliárias.
A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.
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