A deterioração das contas públicas dos Estados Unidos tem sido uma constante ao longo dos últimos anos, com a maior economia do mundo a acumular elevados défices orçamentais consecutivos que colocaram a dívida pública numa trajetória que é vista como insustentável.

Os investidores têm reagido com complacência a esta dinâmica preocupante, continuando disponíveis para financiar os Estados Unidos. O mercado de dívida norte-americano é o maior e mais líquido do mundo, as obrigações soberanas do país (Treasuries) são percecionadas como um dos ativos mais seguros do mundo e marcam presença obrigatória nas carteiras de todo o tipo de investidores.

Os muitos alertas sobre a evolução das finanças públicas norte-americanas não têm sido suficientes para abalar esta narrativa que tem dominado os mercados globais nas últimas décadas. As Treasuries continuam a ser o “fiel da balança” dos mercados, assumindo um papel determinante na evolução da generalidade dos ativos cotados nos mercados.

Contudo, 2025 está a ser marcado por uma vigilância mais apertada às contas públicas dos Estados Unidos, sendo evidente um desconforto crescente dos investidores globais com a prática habitual de financiar a maior economia do mundo “sem pestanejar”.

A política comercial agressiva e errática da administração de Donald Trump está a gerar receios de travagem forte da economia, acompanhada de um novo disparo na inflação. A política orçamental também contribui para o pessimismo, pois o presidente dos Estados Unidos enviou para o Congresso uma proposta de lei que corta impostos e aumenta a despesa pública.  

Está instalada uma onda de desconfiança nos ativos norte-americanos, que tem atingido de forma mais intensa as obrigações e o dólar. Os mercados assistem este ano a um raro movimento em que as ações, títulos de dívida e moeda dos Estados Unidos evoluem em conjunto de forma negativa, confirmando que “Sell America” é uma realidade e os investidores estão mesmo a reduzir a exposição aos ativos norte-americanos.

Leia ainda: Dólar em queda face ao euro. O que significa para a sua carteira?

Dívida pública triplicou para 100% do PIB 

Os investidores estão sobretudo preocupados com as previsões de agravamento acentuado das finanças públicas dos Estados Unidos no futuro, mas os números do passado já são suficientes para assustar:

– Desde 2001 que os Estados Unidos registam défices orçamentais todos os anos. Nos últimos cinco anos o défice orçamental ficou sempre acima dos 5%.

– A dívida pública líquida passou de 33,7% do PIB em 2000 para 97,8% no ano fiscal que terminou em 30 de setembro de 2024. Um agravamento de quase três vezes em 25 anos que reflete os défices orçamentais consecutivos.

– A evolução em valores absolutos é ainda mais preocupante. A dívida pública disparou de 3,4 biliões de dólares em 2000 para 28,2 biliões de dólares em 2024. A dívida federal (em termos brutos) já está acima de 36 biliões.

– No atual exercício fiscal, a dívida pública já atingiu o equivalente a 100% do PIB, o que representa o nível mais elevado desde a II Guerra Mundial.

– Entre outubro de 2024 e abril deste ano, o orçamento federal gerou um défice de 1,1 biliões de dólares, um agravamento de 196 mil milhões de dólares face ao período homólogo. As receitas públicas subiram 5%, enquanto as despesas aumentaram 9%.

– No ano fiscal de 2024, o Tesouro norte-americano gastou 881 mil milhões com pagamento de juros, o que corresponde a 3,1% do PIB. Nos primeiros sete meses do ano fiscal de 2025 já gastou 588 mil milhões de dólares, superando o montante (548 mil milhões de dólares) gasto com o Medicare, o sistema de saúde pública dos EUA para os idosos.

Défice orçamental vai continuar galopante

Se os números históricos já assustam, as previsões para os próximos anos não deixam margem para dúvidas de que as contas públicas dos Estados Unidos estão numa trajetória que não é sustentável. Estas são algumas das projeções do Congressional Budget Office (CBO), entidade independente do Congresso dos EUA que tem a responsabilidade de avaliar o impacto da política orçamental.

– A dívida pública dos EUA vai atingir máximos históricos em 2029 em 107% do PIB, superando o anterior pico de 1946 (106% do PIB). Na projeção a 10 anos (2035) atingirá 119% do PIB, mantendo uma tendência de agravamento até uns incomportáveis 155% do PIB em 2055.

– O CBO alerta que esta evolução vai “abrandar o crescimento económico, elevar o montante dos juros pagas aos credores estrangeiros, representando um risco significativo para as perspetivas orçamentais e económicas, que ameaçam as políticas públicas” do país.  

– O défice orçamental é visto a superar 5% do PIB todos os anos até 2055, altura em que atingirá 7,3% do PIB. Um agravamento notório face à média dos últimos 25 anos (4,6%) e 50 anos (3,8%).

– A fatura com o pagamento de juros deverá agravar-se para 3,2% do PIB em 2025, permanecendo sempre acima da fasquia dos 3% até 2023 e acima dos 4% a partir desse ano. Chegará a 2055 já acima de 5%, quase anulando o valor que o Tesouro deverá recolher através de impostos sobre salários (5,9%).

Corte de impostos agrava perspetivas

Foi a análise a estes números, conjugada com a preocupação com o impacto do pacote orçamental de Trump, que levou a Moody’s a reduzir a notação financeira da dívida dos Estados Unidos. A Standard & Poor’s foi a primeira a retirar a maior o rating máximo à maior economia do mundo (2011) e a Fitch fez o mesmo em 2013, pelo que os Estados Unidos já perderam a classificação máxima (“AAA”) por todas as três maiores agências de notação financeira.

A Moody’s tem perspetivas ainda mais pessimistas para a evolução das contas públicas, estimando um défice orçamental de 9% do PIB em 2035, ano em que a dívida pública já estará em 134% e o pagamento de juros representará mais de um terço das receitas públicas. Aplicando estas métricas a qualquer outro país, a discussão não estaria em perder o rating máximo, mas antes se não justificava uma descida para o patamar de “lixo”.

Donald Trump classificou a sua proposta de lei orçamental de “grande e linda” e a Casa Branca tem defendido que tem potencial para baixar o défice devido ao impulso que dará à economia (PIB mais elevado e receitas mais altas). Vários economistas alinham com esta narrativa, destacando que a pujança da maior economia é suficiente para absorver potenciais choques nas contas públicas. Mas a maioria tem uma visão diferente, considerando inevitável que agrave a trajetória do défice e da dívida.  

Segundo o Comité para o Orçamento Federal Responsável, esta legislação pode adicionar entre 3,3 e 5,2 biliões de dólares à dívida federal dos Estados Unidos nos próximos dez anos. Após um agravamento de 80% em oito anos, esta rubrica (dívida em termos brutos) já está acima de 36 biliões de dólares.

Descida das yields é crucial para Trump

O corte de rating da Moody’s agravou a tendência de subida das yields das obrigações soberanas dos Estados Unidos, sobretudo nos prazos mais longos, parte da curva de rendimentos que é mais vulnerável às perspetivas para a evolução das contas públicas e da atividade económica.

A taxa de rendibilidade (“yield”) das obrigações a 30 anos superou a fasquia dos 5%, atingindo o nível mais elevado desde o final de 2023 e muito perto de galgar para máximos de 2007. No prazo de referência a 10 anos, a taxa regressou acima do patamar de 4,5%.

Os investidores estão a exigir um prémio mais elevado para financiar os Estados Unidos, numa dinâmica que representa um forte revés para Donald Trump. O presidente norte-americano nunca escondeu que um dos seus principais objetivos passa por baixar as yields das obrigações, daí a pressão intensa para a Fed baixar as taxas de juro.

A subida das yields das obrigações agrava ainda mais o fardo com o pagamento de juros e o Tesouro norte-americano tem de aumentar o volume das emissões de dívida para financiar os défices crescentes. Ainda não existem sinais preocupantes de falta de procura por parte dos investidores pelos títulos dos EUA, mas uma deterioração adicional dos indicadores orçamentais e económicos pode gerar stress no mercado.

Além do impacto orçamental, a subida das yields também tem implicações significativas na atividade económica. As taxas de juro dos empréstimos das famílias e empresas estão indexadas às yields das obrigações, pelo que uma tendência altista vai restringir o consumo privado e o investimento empresarial.

Donald Trump tem demonstrado uma elevada sensibilidade à evolução das yields das obrigações, sendo que muitos dos recuos na frente das tarifas aconteceram precisamente em momento de maior turbulência no mercado de dívida. Para que o susto dos investidores não se transforme numa crise, a administração norte-americana terá de dar um sinal claro de responsabilidade orçamental. Num cenário onde a confiança dos mercados já está a enfraquecer, é decisivo conter o défice e aliviar a pressão sobre as yields.

Leia ainda: O perigo de tentar adivinhar a direção dos mercados

Autores ConvidadosInvestimentos