Cultura e Lazer

Nos provérbios, a pobreza é uma fartura (parte I)

Poderíamos definir “pobreza” como o mal da escassez. Mas, quando toca aos provérbios, o tema é tratado com abundância.

Poderíamos definir “pobreza” como o mal da escassez. Mas, quando toca aos provérbios, o tema é tratado com abundância.

A fartura é tanta que vamos servir os provérbios ligados à pobreza em duas partes. Nesta primeira metade, centremo-nos nas sentenças moralistas, às vezes acusatórias para com os mais desfavorecidos. «A preguiça é a chave da pobreza», assegura o povo, numa versão resumida e sem sal do anexim indexado por Francisco Roland, em 1841: «Se queres ser pobre sem o sentir, mete obreiro, deita-te a dormir.» Em 1847, nas máximas propostas pelo conselheiro Rodrigues de Bastos, a pobreza até podia ser uma questão de querer ou não querer: «Com inteligência, trabalho e economia, só é pobre quem não quer ser rico.»

Pobre e desonrado? Tenha siso, senhor

Não satisfeita, a sabedoria popular ainda encontrou forma de exaltar quem tem muito e depreciar quem tem pouco: «Mau ou ruim é o rico avarento, mas pior é o pobre soberbo.» Seria caso para pedir misericórdia, mas os provérbios ainda têm contas a ajustar com quem vive na penúria. No fundo, a hipótese de culpa própria já provinha do século 14, no dito recolhido por Ramon Llull: «Quem tem prudência não é pobre.» Mas há pior, como associar os pobres à falta de retidão. «Pobreza é inimiga da virtude» ficou como a forma simplificada de uma ideia que já teve variantes mais requintadas. «Quando a miséria entra pela porta, a virtude sai pela janela» ainda aparece listado nos dicionários modernos de provérbios, embora fique aquém do dito incluído na Collecçao de Provérbios, Adágios, Rifãos, Anexins, Sentenças Morais e Idiotismos da Lingoa Portugueza: «Quando a necessidade bate à porta, foge a virtude pela janela», sentença que, naquele ano de 1848, não tinha a ver com moralismos, querendo significar austeridade no viver. Ou seja, «luxo e pobreza nunca emparelharão».

Já o Dicionário de Máximas, Adágios e Provérbios, compilado em1936 pelo Major Hespanha, assegurava que «O paraíso dos ricos é feito com o inferno dos pobres». Entremos, então, numa visão menos incriminatória dos carenciados, pois «A pobreza não é vileza, nem mancha». Sob o mesmo tema, é certo que encontraremos frases nunca ouvidas ao folhearmos a coleção do conselheiro Rodrigues. «A pobreza não é vicio, mas tem-se vergonha de ser pobre, e a miséria conduz ao crime.» Diz o povo ou o conselheiro? «A pobreza não é vil, mas pode levar-nos à vileza», avisa o povo, ou será mais uma ideia do autor da Collecçao de Pensamentos, Máximas e Proverbios? Apetece ir buscar o rifão indexado por Roland para sentenciar a querela: «Quem diz que a pobreza é vileza, não tem siso na cabeça.»

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A alegria de não ter nada

Há bastantes entradas a defenderem que, na verdade, «pobreza não é vergonha», se bem que esta aparente magnanimidade se esvaia rapidamente, perante o paternalismo de um «Quem nada tem, nada perde». Querem outras versões da mesma ideia? Ei-las, retiradas de várias fontes:

«Quem nada tem, não tem medo dos ladrões.»

«Quem não tem farinha, não precisa de peneira.»

«Homem pobre com pouco se alegra.»

«Pobrete mas alegrete.»

Fica-se a matutar sobre quem terá inventado esta máxima de que os pobres, se nada têm, de nada precisam, e de que a resignação talvez os faça andar de sorriso no rosto. Terá sido um termo cunhado pelos ricos para alívio de consciências? Ou foi o povo que os inventou, misturando um realismo cru com uma vontade de mostrar que, mesmo com um punhado de nada nas mãos, ainda seria capaz de apreciar a vida? Na época em que Ramon Llull compilou o seu Livro dos Mil Provérbios (1303), a fé cristã serviria de conforto: «O homem pobre frequentemente é um anjo.» Que se apaziguassem as almas, pois «Quem é pobre neste mundo é rico no outro».

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Sem cheta, mas com dignidade  

Não faltam conselhos a quem seja pobre. O conselheiro encontrou – ou criou? – duas pérolas para o contentamento com o ter pouco. 1) «Nada agrava mais a pobreza, que a mania de querer parecer rico»; 2) «Nem sempre depende de nós o não sermos pobres, mas de nós depende sempre o fazer respeitar nossa pobreza.» Francisco Roland também encontrara ditos únicos sobre o assunto: «A vergonha no pobre, fá-lo mais pobre» e «Não te exaltes por riqueza, nem te abaixes por pobreza», defendiam a noção de manter o orgulho próprio, apesar da condição de vida.

Perante tantas e tão diversas aproximações ao tema, torna-se difícil escolher a forma de encerrar esta primeira viagem à pobreza nos provérbios portugueses. É um daqueles casos em que a abundância se revela problemática. Impossibilitados de listar as dezenas de provérbios encontrados, fiquemos por um que, de certa forma, terá alguma da essência do que será a condição de que temos vindo a falar: «O pobre só é quem sabe quanto sofre o pobre.»

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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.

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