Cultura e Lazer

Como explicar uma crise financeira em 500 palavras

A crise de 2008 foi um momento marcante do século XXI. Desde então, outras surgiram, tão ou mais brutais. Porém, vale sempre a pena tentar entender o passado.

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Como explicar uma crise financeira em 500 palavras

A crise de 2008 foi um momento marcante do século XXI. Desde então, outras surgiram, tão ou mais brutais. Porém, vale sempre a pena tentar entender o passado.

Já lá vamos às tais 500 palavras. Antes, precisamos de falar de um telefilme. Com um elenco de luxo, dirigido por um realizador de créditos firmados, baseado no livro de Andrew Ross Sorkin com o mesmo nome, Too Big to Fail (Demasiado Grande Para Falhar, 2011) começa com discursos dos presidentes norte-americanos Ronald Reagan, Bill Clinton e George Bush Jr. sobre a crescente desregulamentação do setor bancário. Passados uns segundos, já estamos dentro do furacão, a escutar zunzuns sobre a famosa bolha do imobiliário. O banco de investimentos Lehman Brothers será o primeiro protagonista da história, através do seu teimoso presidente Dick Fuld, mas rapidamente se percebe que papel principal caberá ao secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Paulson, o homem que se vê a braços com uma crise capaz de colapsar todo o mercado financeiro.

Um carrossel de dinheiro (e de emoções)

Diga-se que talvez o maior desafio deste telefilme talvez tenha estado na escrita do argumento. Não é fácil pegar num tema bastante técnico – a dita “crise do subprime” – e transformá-lo numa linguagem acessível para os espectadores menos conhecedores do modo de funcionamento da economia, da banca, dos mecanismos reguladores, do… Só isto já pode chegar para nos confundir, não é? Uma das frases promocionais bem tenta simplificar o que terá estado por detrás de tudo: «O que é que faz o mundo girar? (O DINHEIRO!)» Tudo bem, até já desconfiávamos, mas, no caso desta película que promete dar-nos «A verdadeira história por detrás da crise financeira de 2008», o dinheiro implica o mercado de ações, o negócio do imobiliário, multimilionários vistos como salvadores da pátria, jogos de bastidores entre potências económicas, atos tresloucados de fé, inconsciências, rumores, negociatas, braços de ferro entre entidades governamentais e instituições do setor privado, reuniões de emergência, pactos secretos, acordos que falham no último segundo, enfim, um turbilhão de eventos que transforma Too Big to Fail num carrossel que gira ininterruptamente.

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Ficção capaz de explicar devidamente a realidade

Porém, apesar da trama complexa, sentimos que nunca perdemos o comboio. E lá vamos conseguindo acompanhar as explicações do que está a acontecer, embalados na vertigem dos acontecimentos (e na excelência das atuações), como se estivéssemos numa peça de Shakespeare, mas, ao mesmo tempo, num thriller passado em gabinetes, em salas de reunião, em chamadas telefónicas nas quais se pressiona, se sussurra, se insinua. Desde a primeira cena, percebe-se que acabámos de entrar numa corrida contra o tempo. E percebem-se os dilemas morais entre os resgates avulsos (sem a sustentação de legislação adequada) e as medidas de fundo (apoiadas em cenários mais democráticos) que possam salvar e refundar o sistema financeiro.

A introdução de excertos documentais de presidentes a discursarem ou de votações na câmara dos representantes serve para aprofundar o realismo de uma história que culminou com a declaração de falência do Lehman Brothers, numa segunda-feira negra de setembro de 2008. Era a primeira peça de dominó a cair. O fogo, de repente, alastrava incontrolável. E que aconteceria caso explodisse a bomba da seguradora AIG? O caos.

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Uma cena de cinema genial e histórica

Já vamos a mais de meio do telefilme quando surge aquela que talvez seja a explicação mais eficaz do que foi a crise financeira de 2008. A certa altura, a secretaria do Tesouro percebe o imperativo de esclarecer o público sobre o que está a acontecer. (E, mais tarde, o que veio a acontecer: 125 mil milhões injetados pelo governo federal em nove bancos, em troca de ações preferenciais.) Cabe a Hank Paulson, com a ajuda do seu staff, a tarefa de mostrar à responsável de relações públicas [Michele Davis] o que deveria ser comunicado à imprensa. E, porque este pedaço de texto a rondar as 500 palavras é a súmula perfeita de um caso que teve consequências catastróficas no mundo inteiro, fechamos aqui este artigo, deixando a transcrição para os mais curiosos. Mas, antes, um pequeno alerta: olhem que vale mesmo a pena ir em busca do filme…

[no gabinete de Hank Paulson, vemos reunida a equipa da secretaria do Tesouro dos Estados Unidos]

Michele Davis: Odeio ter de fazer isto agora, mas vou ter de convocar uma conferência de imprensa logo pela manhã e não sei o que dizer aos jornalistas.

Neel Kashkari: Diz-lhes que o Lehman exacerbou a AIG. Os pagamentos simultâneos de CDOs e credit default swaps colocaram uma pressão catastrófica...

Henry Paulson: Vai mais atrás.

Neel Kashkari: O conjunto total de capital de investimento...

Henry Paulson: Ela tem de explicar isto direitinho! Começa pelos proprietários.

Jim Wilkinson: Certo, é assim que vais explicar. Wall Street começou a agregar créditos habitação, garantias hipotecárias, e a vender fatias desses pacotes aos investidores. E como estavam a obter lucros enormes, passaram a pressionar quem emprestava o dinheiro, dizendo-lhes: "Vá lá, precisamos de mais empréstimos." 

Henry Paulson: Os credores já tinham emprestado aos mutuários com crédito bom [boa classificação de crédito] e, por isso, foram mais ao fundo, baixando os critérios.

Neel Kashkari: Antes, era preciso ter uma pontuação de crédito de 620 e dar um sinal de entrada de 20%. Mas agora já aceitavam uma pontuação de 500, sem sinal de entrada.

Jim Wilkinson: E o comprador – as pessoas comuns – presume que os especialistas sabem o que estão a fazer. E pensa: “Se o banco está disposto a emprestar-me dinheiro, então é porque devo ser capaz de pagar." Por isso, vai em busca do sonho americano e compra a casa.

Neel Kashkari: Os bancos sabiam que os títulos sustentados em hipotecas merdosas eram arriscados...

Henry Paulson: Depois substituis “merdosas”…

Neel Kashkari: …por isso, para controlar as perdas, os bancos começaram a comprar uma espécie de seguro. Se a prestação não for paga, a seguradora cobre: swaps de risco de incumprimento. Os bancos fazem o seguro das suas perdas potenciais, com a finalidade de tirar o risco das suas contabilidades, e assim poderem continuar a investir e a obter mais lucros.

Henry Paulson: E, embora houvesse muitas empresas a fazerem estes seguros, uma foi suficientemente burra para assumir uma quantidade inacreditável de risco.

Michele Davis: A AIG.

Jim Wilkinson: E também alteras “burra”…

Michele Davis: E quando me perguntarem o porquê de ela ter feito isso?

Jim Wilkinson: Taxas!

Neel Kashkari: Centenas de milhões em taxas.

Henry Paulson: A AIG achava que o mercado imobiliário continuaria a crescer, mas eis que acontece o inesperado.

Jim Wilkinson: Os preços das casas descem.

Neel Kashkari: O pobre-diabo que comprou a sua casa de sonho vê acabar a atrativa taxa inicial do seu crédito habitação, a prestação sobe, e ele deixa de conseguir pagar o empréstimo.

Henry Paulson: Os títulos de hipotecas caem a pique. A AIG tem de pagar os swaps. Todos. Pelo mundo inteiro e ao mesmo tempo.

Neel Kashkari: A AIG não consegue pagar e afunda-se. Todos os bancos que fizeram seguros com ela têm de registar perdas enormes, exatamente no mesmo dia. E então é a vez de todos eles se afundarem. Vem tudo abaixo.

Michele Davis: O sistema financeiro todo?

[Wilkinson acena com a cabeça]

Michele Davis: E que lhes digo quando me perguntarem porque é que não se regulamentou isto?

Henry Paulson: Porque ninguém queria. Estávamos a ganhar demasiado dinheiro.

[Paulson levanta-se e entra na casa-de-banho do seu gabinete]

Jim Wilkinson: Depois trabalhas nisso do “estávamos a ganhar demasiado dinheiro”.

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