Cultura e Lazer

Vende-me essa propriedade, já…agora!

Um filme cujo slogan nos prepara para o que esperar. "Vender é a coisa mais difícil da vida" tornou-se motivo de inspiração, em vez da crítica pretendida.

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Vende-me essa propriedade, já…agora!

Um filme cujo slogan nos prepara para o que esperar. "Vender é a coisa mais difícil da vida" tornou-se motivo de inspiração, em vez da crítica pretendida.

Nem sempre se conseguem conjugar boas sugestões com os nossos gostos pessoais; há filmes que podem ser relevantes para os temas que queremos abordar, mas que não entram na categoria dos melhores que já vimos. Pois bem, este Glengarry Glen Ross faz o pleno em termos do setor imobiliário. Realizado em 1992, com base na peça premiada de David Mamet, a obra não só mantém a pertinência sobre a crueza do mundo das vendas, como permanece um grande filme.

Se for bem-sucedido, tudo me é permitido

Os nomes de Al Pacino, Jack Lemmon, Alan Arkin, Ed Harris, Kevin Spacey e Jonathan Pryce já chegariam para formar um dos elencos masculinos mais fabulosos de sempre, mas temos ainda de juntar a aparição de Alec Baldwin que, na pele de Blake, precisa apenas de uma cena (a única em que aparece) para deixar uma impressão indelével. O discurso “motivacional” que ele dá à equipa de um escritório de venda imobiliária tornou-se tão icónico quanto as frases ditas por Michael Douglas em Wall Street. E, tal como aconteceu com a personagem de Gordon Gekko, as intenções de denúncia da selvageria no mundo das vendas transformaram-se, ao invés, em palavras inspiradoras.

Blake trata os corretores de imobiliário abaixo de cão. Humilha-os. Insulta-os. E, ainda assim, o site imdb, na seção de curiosidades, refere que Glengarry Glen Ross tem sido usado, desde a data de estreia, em ações de formação reais de departamentos de venda. Nos Estados Unidos, tiradas como a do «café é para quem fecha negócios» (ou seja, só quem concretiza a venda é que tem direito à pausa do café) tornaram-se populares em empresas ligadas ao ramo das vendas.

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Fecha o negócio! FECHA o negócio!

Eis o que acontece quando bons diálogos são devidamente servidos pelos atores: o que devia ser escutado como uma crítica, passa a ser alvo de reverência. Muitos vendedores passaram a querer ser aquele Blake que enxovalha tudo e todos, mas que pode gabar-se de ter um relógio de luxo no pulso e de ter chegado no BMW vermelho de 80 mil dólares que ficou estacionado na rua: «Este relógio custa mais do que o teu carro. Fiz 970 mil dólares em comissões no ano passado. Quanto é que tu ganhas? Vês, pá, isto é o que eu sou, e tu não és nada. És um tipo porreiro? Estou-me nas tintas. Bom pai? Vai-te lixar! Vai lá para casa brincar com os teus filhos. Queres trabalhar aqui? Fecha [o negócio]!»

Na voz e na aparência estilosa de Baldwin, o mundo das vendas, em vez de um autêntico pesadelo, parece um mundo extraordinariamente atrativo. «Querem saber o que é preciso para vender imobiliário?», pergunta Blake: «É preciso tomates de aço para vender imobiliário! Façam como eu, cavalheiros. O dinheiro anda lá fora. Se o agarrarem, é vosso. Se não, não tenho nenhuma pena de vocês. O que vocês precisam de fazer é ir lá para fora e fechar! Fechar! E [o dinheiro] é vosso. Se não, vão passar a engraxar os meus sapatos. E sabem o que vão passar a dizer, sentados num bar, como um bando de perdedores? “Oh, sim, eu costumava ser um vendedor. É um setor difícil…”»    

O realizador James Foley, que conseguiu estar à altura do texto de David Mamet, também é um dos culpados pelo sucesso do filme. A história desenrola-se em cenários claustrofóbicos (desde o escritório apinhado com umas quantas secretárias ao espaço exíguo de uma cabine telefónica), marcados pelos tons escuros e pelos sons da chuva quase ininterrupta. Será neste ambiente pesado de film noir que se vãoservindo pequenas e constantes doses do desespero e da ansiedade sentidos pela equipa de vendas.

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Acreditam no inferno bíblico ou no inferno terrestre?

Na selva do imobiliário, só o bem-sucedido Ricky Roma (Al Pacino) parece salvar-se. Ao falar com um colega, ele dá a receita para se chegar ao topo: «Sabes quando tempo me levou a chegar aqui? Muito tempo. Quando morreres, vais arrepender-te das coisas que não fizeste. Achas que és esquisito? Vou dizer-te uma coisa: somos todos esquisitos. Achas que és um ladrão? E depois? Ficas confuso por causa de uma certa moralidade de classe-média? Desliga-te disso. Afasta isso. Traíste a tua mulher? Se o fizeste, lida com isso. Comes rapariguinhas, pois bem, seja. Existe uma moralidade absoluta? Talvez. E então? Se achas que existe, vai em frente, vive dessa forma. As pessoas más vão para o inferno? Não me parece. Se achares que sim, age de acordo com isso. Existe um inferno na terra?  Sim. Eu não vou viver nele. Mas isso sou eu.»

Entre a brutal intervenção de Blake, as conversas quase filosóficas e as reações de cada personagem perante a obrigatoriedade de gerar vendas a qualquer custo, Glengarry Glen Ross (cujo título junta duas propriedades mencionadas durante o filme: “Glengarry Highlands” e “Glen Ross Farms”) reflete a imagem de um capitalismo tipicamente norte-americano onde não existem propriamente regras de conduta, nem problemas de consciência. O que interessa é vender, vender, vender. Vender até se ser o novo Blake lá do sítio.

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