Cultura e Lazer

A dura vida de quem ganha mal

Um videojogo que simula uma realidade que muitos prefeririam deixar escondida: a luta diária de quem tem rendimentos baixos.

Cultura e Lazer

A dura vida de quem ganha mal

Um videojogo que simula uma realidade que muitos prefeririam deixar escondida: a luta diária de quem tem rendimentos baixos.

Esperamos que nunca tenha passado por uma situação tão dramática como a que nos propõe Spent: acabamos de perder o emprego, tivemos de largar a casa em que vivíamos, as nossas poupanças esgotaram-se e só nos restam 1.000 dólares na conta. Conseguiremos chegar ao final do mês? Reequilibraremos a nossa vida? Ou será que não vamos poder pagar a renda do novo sítio e nos tornaremos uma família sem-abrigo?

Eis um videojogo que pretende mostrar, sem paninhos quentes, como a vida de uma família de rendimentos baixos se transforma num exercício permanente de escolhas difíceis. Valia bem a pena fazer-se uma versão em português deste Spent, cujo título poderíamos traduzir para “Nas Lonas”, ou “A Zeros”, ou qualquer outra coisa que nos indicasse que tínhamos ficado sem dinheiro (nota: se por acaso conhecerem algum videojogo que julguem adequar-se à nossa rubrica, sugiram por favor).

Onde cada momento é um quebra-cabeças

Desenvolvido pela agência de publicidade McKinney, com base em dados estatísticos e tendo como objetivo incentivar as pessoas a fazerem donativos aos Ministérios Urbanos de Durham (uma entidade comunitária dedicada ao auxílio dos sem-abrigo), este jogo de simulação testa-nos logo na escolha do nosso novo trabalho. Será preciso estudar bem as três ofertas à nossa frente. Servir às mesas? Bom, esperemos que as gorjetas sejam boas… É que até nos obrigam a comprar o uniforme. E convém não esquecer o seguro de saúde obrigatório.

Ainda nem recebemos o primeiro cheque e os dólares da nossa conta já começaram a desaparecer. De facto, a ilusão de que tudo irá correr bem esfuma-se rapidamente. A vida em Spent, aliás, nunca é óbvia ou linear. Ao escolhermos um sítio para morar, podemos tentar ficar mais perto do trabalho – carregando na renda e poupando nas deslocações para o trabalho –, ou ficar mais longe – pagando menos pela casa e gastando mais em combustível. Pensando em ir a pé e deixar o carro parado, escolhemos um local próximo do emprego, com uma renda altíssima e onde os nossos pertences não cabem todos. E então: fazemos uma venda de garagem, alugamos um armazém ou pedimos a um amigo que nos guarde as coisas? Optámos por vender tudo o que não iria caber no novo sítio e fizemos 150 dólares.  

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Sem folga monetária para ir ao médico

Porém, todo o dinheiro que entra acaba por se ir num instante. É o miúdo que quer ir jogar futebol e precisa de equipamento, ou o imposto de circulação do carro (mesmo que quase não o usemos…). De repente, vemos alguém deixar cair uma nota de 10 dólares. Será que a devolvemos ou ficamos com ela? E se andarmos com umas dores no peito, vamos gastar 50 paus num médico? Tudo bem, a nossa família até tem historial de doenças de coração, mas a conta quase a zeros... Acabamos por não ir ao médico e, tal como acontece após cada decisão que tomamos, o dilema em causa serve para nos transmitir algumas informações estatísticas: «Essa é uma decisão perigosa. Nos Estados Unidos, as doenças do coração são a primeira causa de morte tanto para os homens como para as mulheres.» E, dado que também não fomos a um concerto com os nossos amigos, com o intuito de poupar, dizem-nos que a falta de distrações é um fator que aumenta os níveis de stresse nos trabalhadores com baixos salários. Será caso para começarmos a fumar, sob a ideia errónea de que um cigarro relaxa?

Tudo em Spent é um potencial fator de stresse. Ir ao supermercado, por exemplo, implica distinguir o básico do supérfluo. Desta vez, compramos maçãs, feijão em lata, esparguete, cereais, tomates, frango, papel higiénico, ovos, leite, e dispensamos os sumos, o queijo caro, a manteiga de amendoim, os rolos de papel de cozinha.

Endividados, falidos, derrotados

Não há folga para quase nada. Aceitámos que um amigo venha morar na nossa sala, para nos ajudar na renda, mas ele rapidamente se transforma numa fonte de problemas. Devemos aturá-lo ou mostrar-lhe a porta da rua? E quando o nosso filho adoece: ficamos com ele em casa, faltando ao trabalho, ou enviamo-lo para a escola mesmo doente? Talvez até arrisquemos deixá-lo sozinho em casa, pois, se faltarmos ao trabalho, não recebemos o salário e são capazes de nos substituírem… Se ele partir um vidro a jogar à bola, em vez de o substituirmos, contentamo-nos com um plástico preso com fita cola. Depois, ao levarmos o miúdo ao treino, ou porque estávamos atrasados ou, se calhar, um bocado nervosos, passamos por uma lomba com um pouco de velocidade a mais e acabamos por dar um toque na traseira do carro da frente. Fatura do estrago: quase 500 dólares. Que fazer? Deixar um bilhete com o nosso contacto ou fugir do local? Quisemos ser sérios, pagámos o arranjo, e fomos à bancarrota no dia 25. Nem um mês aguentámos.

Voltámos ao início do jogo, escolhemos outra profissão (desta vez fomos um empregado temporário de escritório), e lá conseguimos chegar ao final do mês, é verdade, mas sem dinheiro suficiente para pagar a renda, com um dente podre que nos custará 800 dólares a arranjar, sem ter pagado o seguro do carro nem renovado o registo da viatura. A dívida no cartão de crédito, avisam-nos, ascende a mais de 7 mil dólares; se nos limitarmos ao pagamento mínimo mensal, levaremos 17 anos a saldar o montante em dívida...

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Situações que nos testam a ética

Só com base no nosso salário baixo, a sobrevivência parece uma tarefa impossível. Que hipóteses nos dão de ganhar dinheiro extra? Assaltar o mealheiro do filho, doar sangue, pedir um adiantamento do ordenado. Mesmo assim, será um feito conseguirmos chegar ao final do mês e provar que nunca precisaremos da ajuda de instituições de solidariedade ou de apoios do Estado.

O mundo das pessoas com baixos rendimentos é uma autêntica selva. Há senhorios que aumentam a renda sem pré-aviso e que, ao serem confrontados com a ilegalidade do ato, se limitam a responder: “Se não lhe agrada, mude-se”. Depois, há situações que nos testam a humildade, como quando um vizinho repara que temos o casaco todo roto e passa por nossa casa para nos oferecer o casaco usado dele. Aceitamos e agradecemos ou rejeitamos, por não querermos que nos vejam como uns coitadinhos? O mesmo se passa com o nosso filho, que teria direito a receber refeições gratuitas na escola. Ao que parece, ele prefere passar fome a ter de enfrentar o estigma de os colegas o identificarem como um rapaz pobre.

Um videojogo opressivo, tal como a vida pode ser

Spent quer mostrar que as nossas vontades pouco importam perante a falta de dinheiro. Muitas vezes, a escassez até nos obriga a ir contra os nossos valores. Desta vez, quando fizemos acidentalmente uma amolgadela num carro de outra pessoa, não tivemos outra hipótese senão afastarmo-nos do local sem deixarmos nenhum bilhete. O arranjo, já sabíamos, levar-nos-ia à bancarrota. Depois disso, enviámos o nosso filho à festa de aniversário de um colega sem que ele lhe levasse um presente, não arranjámos 15 dólares para pagar a visita de estudo ao museu de história natural, aceitámos trabalhar um turno extra, mesmo que isso nos impedisse de assistir à peça da escola em que o rapaz entrava. Também não fomos ao casamento do nosso melhor amigo de infância, por implicar uma viagem de avião. E que estará ao nosso alcance ao sermos confrontados com a doença do nosso animal de estimação? Podemos tratá-lo por 400 dólares, mandar abatê-lo por 50, ou simplesmente deixá-lo sofrer…

Este videojogo sem imagens, assente apenas em descrições, consegue ser do mais agonizante que já vimos. Mas não poderia ser de outra forma. A escassez de dinheiro para as coisas básicas da vida também é opressiva e essa é a realidade dos milhões de americanos que, apesar de terem trabalho, enfrentam quotidianamente uma existência de quase pobreza. Mesmo que o jogo seja em inglês, a realidade aqui representada pode transportar para outras línguas e geografias. Aguardemos, então, pela versão portuguesa.

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A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.

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